domingo, 30 de maio de 2010

Sem foto de R



Foto: Orlando Luis Pardo Lazo

Este post não tem a imagem de R porque não tive coragem para lhe dizer que me deixasse fotografar o buraco da facada em sua nádega. Era por volta das duas da manhã de sábado e estávamos Ciro, um jornalista e eu na casa de Juan Juan quando tocou o telefone.

R gritava do outro lado do telefone, podíamos escutar seus soluços e as palavras "sangue" e "me espetaram", estava exatamente a uma quadra da loja "La Mariposa" em Novo Vedado, na esquina da sua própria casa. Os homens saíram para buscá-la no carro de Juan Juan. Minutos depois tinha diante de mim uma mulher com o rosto manchado de sangue, a boca inchada e um furo com auréola rosa na calça, justamente onde se dão as injeções: tomaram seu celular, deram-lhe pancadas e para rematar um "espeta, espete-a mais!", que graças a deus não chegou ao mais ou não haveria saído com vida. Ajudei-a a tomar banho enquanto ela só repetia "eram uns meninos, da idade do meu filho", e tremia como uma folha.

-Temos que ir ao hospital porque a ferida tem que levar pontos, depois descansas.

No Clínico Cirúrgico o cirurgião de plantão, que despertamos, perguntou:

-O que aconteceu?
-Assaltaram-na, esfaquearam-na - disse-lhe, e então começou o surrealismo de verdade:

Sentou-se numa escrivaninha, pegou papel e caneta, olhou R e sem diferença entre o furo na sua nádega e sua rotina numa amigdalite, dispos-se a preencher um formulário:

-Nome? Sobrenome? Idade? Município?

Enquanto ele tentava que sua esferográfica escrevesse, eu matava uma baratinha que deambulava sobressaindo-se pela mesa e que bordejava sem dificuldade o papel. Quando terminou com as formalidades deu uma olhada - pensei por um instante que nunca chegaria a fazê-lo - na ferida.

-Um pontinho e tudo bem, tranquila.

Fomos dar o ponto. O médico me olhou como se eu estivesse completamente fora de mim quando comecei a espantar as moscas da enfermaria: ele, que divide escritório e escrita com as baratas, deve pensar que sou uma maníaca por limpeza. R se encostou - não vou dar detalhes da maca - e o médico preparou o fio para costurar. Um segundo antes de ver a agulha dentro da pele, perguntei:

-Não tem anestesia?
-São apenas pontinhos, não faz falta.
-Os pontos doem.

Juan Juan, parado ao meu lado, branco como o leite e suando frio interviu:

-Porém acaba de ser espancada. Não há anestesia?

Graças a deus que havia e a fizeram, pois os "dois pontinhos" demoraram quinze minutos para serem feitos e R não estava em condições de aguentar mais dor. Por momentos tudo ficou muito denso para mim e tive vontade de vomitar: as moscas, o sangue e o calor. Saí para pegar ar.

-Que líquido é esse? - exclamou Juan Juan quase no final, nestas alturas eu estava dentro outra vez fazendo catarse com as moscas, que perseguia com fúria.

-Iodo, o melhor desinfetante do mundo.
-Ainda bem que não sou alérgica - disse R, e tive que sorrir, senão caía desmaiada.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

O estado irracional


Foto: Penúltimos Días

Neste dias a onda da expectativa me pegou: por mediação do Cardeal Jaime Ortega nos inteiramos que Raúl Castro estaria disposto a libertar alguns presos políticos e de consciência - os mais doentes - atrevo-me a imaginar. Este diálogo entre a Igreja Católica e o General não é fortuito, senão a consequência dos numerosos crimes morais que tem caracterizado a "jovem presidência" do Herdeiro.

Quem recorda nestas alturas o ar de mudanças políticas e econômicas que muitos viram no novo porém quase octogenário presidente? Longe das esperadas reformas nos chegou um prisioneiro de consciência morto em greve de fome, um Guillermo Fariñas intransigente em seus ideais e disposto a seguir os passos de Zapata Tamayo, um aumento consideravel dos atropelos da polícia política contra as Damas de Branco e o lógico repúdio da opinião pública internacional, que os meios oficiais se empenham em chamar de "Campanha Midiática Contra Cuba".

Não tenho esperanças nas boas ações de um Estado cujo simples fato de existir demonstra o totalitarimo que o sustenta. Contudo, mesmo que a mediação da Igreja não dê frutos nem liberdades, alegra-me que os representantes da Fé Católica em meu país hajam tomado posição públicamente frente aos abusos cometidos com total impunidade pelo Estado Cubano.

Talvez mostre-se um pouco ingênua minha conformidade com o diálogo somente, sem esperar os resultados, visto que o objetivo destas negociações seria encontrar um ponto intermediário de benefício para ambos oponentes (Raúl Castro vs A Liberdade), e evidentemente os livres não foram convidados à colocarem suas cartas na mesa. No Comitê Central do Partido a pasta "coerência política" foi guardada sob chave há muito tempo, espero que a Igreja lembre de sopesar este detalhe.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Um povo de menores de idade



Olho com aversão - para que negá-lo? - a cara de Ramiro Valdés na televisão. Desta vez lhe cabe o sermão aos trabalhadores do setor de construção. Já quase não me dou ao trabalho de escutá-lo, cada vez que fala é para resmungar conosco - ele e Machado Ventura se transformaram, para dizer de certa forma, nas bábás do cidadão cubano: admoestações, castigos e ameaças.

A mesma cantilena de sempre: trabalhar mais, pedir menos, não queixar-se tanto, ser combativo, cumprir as tarefas da Revolução, não desviar recursos, não esperar estímulos, confiar nos líderes do processo, ser fiel ao Partido...é a chatice do pai autoritário `a seus filhos eternamente menores de idade.

Ramiro não se pergunta o que os construtores comeriam se não "desviassem" alguns ladrilhos para serem comercializados no mercado negro? Os chefes sindicais, segundo parece, fazem vista grossa. Será que eles também precisam de um salário para sobreviver? Porque não se enche de valor e passa a batuta aos "descumpridores" para que contem sua versão do paraíso dos trabalhadores?

Ao invés de ficar ameaçando com retirada de estímulos e prebendas - que só fazem florescer o oportunismo e a dupla moral - deveria se perguntar porque o salário não é razão suficiente para trabalhar bem, para obter melhores resultados e para aumentar a produção. Claro, isso ele faria se se importasse de verdade, e sim - além disso - não confundiria o Sindicato Nacional de Trabalhadores da Construção com um grupo infantil.

domingo, 23 de maio de 2010

Sem direito de mostrar o rosto



Tornou-se habitual no Noticário Nacional de Televisão ver grupos de cidadãos protestando em diversos lugares do mundo. É irônico para nós, os cubanos, vermos mobilizados espontâneamente os setores de uma sociedade nas notícias do único sistema de informação a que temos direito. Por sua vez é gratificante: sentir que lá fora existem pessoas que intimam o poder com ações civis; e entristecedor: toma-se de repente consciência da terrível solidão em que o Estado nos deixou, um insignificante ante o todo omnipresente.

Outro dia passavam imagens de um protesto de imigrantes nos Estados Unidos e alguns dos manifestantes falavam para as câmeras. Uma mulher de uns quarenta anos se queixava: estava há vários anos no território e ainda estava sem documentos, se os operativos de imigração a encontrassem seria deportada do país. Eu olhava a televisão e pensei - por momentos esta minha Ilha cresce na minha mente e me esqueço do pequeno espaço que ocupamos no mundo - Como diz isso em frente a câmera? Agora os agentes terão seu rosto e irão lhe buscar onde quer que se esconda!

Eu me esquecia que os oficiais de emigração, os serviços de inteligência e contra-inteligência, as leis, o governo, os meios de imprensa e os sindicatos não respondem todos à mesma entidade, e menos ainda ao mesmo partido, além de que a polícia política - bendita liberdade - não existe. Na minha terra, por exemplo, o consulado cubano faz serviço de espionagem na Espanha e envia fotos aos serviços secretos cubanos e ao Ministério do Interior, para que saibam "quem se porta bem lá fora e quem não", os agentes recebem ordens diretas da Segurança do Estado para que alguns cidadãos "complicados" não possam aceder à instituições públicas, os jornalistas oficiais são separados dos seus centros de trabalho por publicarem em sítios (internet) críticas à ideologia oficial, os que se atrevem a dar notícias sem pedir permissão podem um dia levantarem-se com uma condenação de vinte anos de cárcere e os opositores políticos suportam a ira e a represália de todo o Comitê Central do Partido sobre suas cabeças.

Olho os ilegais nos Estados Unidos com seus cartazes e seus olhos desafiadores e me dá uma ligeira inveja, sei que a minha vizinha nunca se atreveria a dizer diante da lente o que esta mulher acaba de gritar ao mundo. Minha vizinha não teme ser deportada, tem carteira de identidade, um endereço fixo e um rosto que, contudo, não mostraria desacordo sob nenhuma circunstância.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

A impunidade do verde


Foto: Claudio Fuentes Madan

Minha amiga ia ao volante enquanto eu, ao seu lado, desfrutava da raridade de passear por Havana de carro. A tarde caía amarela e atravessamos 41 e 42 para pegar a avenida 23 no Vedado. Súbitamente um Lada parado pomposamente no meio da 41 nos impediu a passagem - a nós e também aos que iam atrás.

Ví a mão da minha amiga aproximar-se impulsivamente da buzina enquanto seus olhos, obedecendo ordens mais racionais, focavam na placa do "dono da rua". Só uns segundos se passaram para que seus dedos resvalassem lentamente, sem o menor ruído, até suas coxas. Disse-lhe irônicamente:

-A impunidade é verde.

Porém me olhou com uns olhos cheios de tristeza que converteu meu sarcasmo num ato de sadismo. Senti pena.

Em câmera lenta moveu a alavanca de câmbio para dar marcha à ré. Entre os "puaf,puaf,puaf" do tubo de escapamento trocamos de via e muito vagarosamente passamos ao lado do militar, que nem sequer percebeu que tinha uma fila de arrolhados atrás e conversava tranquilamente.

Não consegui ver a sua cara, porém vi o relógio da sua mão que iluminava, como o dente de Pedro Navalha, toda a avenida.

Nota esclarecedora: A placa verde pertence aos carros de propriedade do Ministério do Interior.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Pura diversão



Foto: Penúltimos Dias

Um grupo de conhecidos conversávamos sobre os movimentos de repúdio. Havia de tudo: os radicais, os moderados e os "ingênuos", eu estava - há que se falar - no grupo dos primeiros. Uma garota contava que quando ela ia às marchas sentava-se ao estilo piquenique no primeiro gramado que encontrava, e que jamais havia gritado nem meia palavra de ordem. Outra relatava como dizia no seu CDR que no primeiro de maio desfilaria com seus companheiros de trabalho enquanto dizia justamente o contrário à estes Um rapaz contou como terminou com sua ex-noiva: ela o havia chamado porque não poderia vê-lo nessa tarde, havia sido convocada para um movimento de repúdio contra as Damas de Branco e não podia faltar. Discutiram e a relação terminou antes da chamada telefônica. Outra, mais sutil, amadora em montagens de fotos digitais, entregava no seu sindicato uma prova "perfeita" da sua presença na marcha da vez.

Nesse momento uma das presentes confessou haver participado de um estranho movimento de repúdio contra a embaixada Checa. Enumerou algumas das palavras de ordem gritadas, "Que se vão os lacaios", entre outras, e concluiu: -Se eles soubessem o pouco que nos interessam as razões do movimento, estamos alí porque não nos resta outro remédio e entre a conguita e o rítmo, nos divertimos.

Quase desmaiei ante tamanha barbaridade. Como uma pessoa pode ser tão inconsciente? Acontece que agora a vítima do repúdio - aquele em que gritam impropérios, obscenidades e no melhor dos casos palavras de ordem políticas - tem que "imaginar" que os alaridos não são o que parecem, senão uma festa popular de estudantes com a massa cinzenta flutuando no vazio?

O tema congelou, durante uns segundos todos a olhamos estupefatos e alguém atinou de perguntar: Quem se importa que te divirtas as custas da vergonha do outro? Porém a garota não entendia: -Não sei, tu acreditas que o pessoal da embaixada se aborreceu?

Todos achamos uma desculpa para sairmos. Eu não lhe disse nada, talvez comece a analizar as coisas no dia em que o grito a afogue no momento de jogá-lo na minha cara.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Minha vida sem saída



Imagem: El Guamá

Há quase seis anos decidi não ir e justamente hoje é o dia em que calmamente reflexiono sobre esse instante. Não foi uma decisão patriótica, nem conformista, nem covarde, mas sim completamente irreverente. Continuo sem encontrar uma só razão lógica que justifique aquele "eu fico" que dizia a todos. Dizem que alguém pode passar o resto da sua vida sem medir as consequencias de suas ações, eu, por sorte, sempre o soube: não ir implicava ficar na canoa furada e a deriva e assumir, além disso, que não iria me calar nem por um instante enquanto afundasse (sempre fui um pouco rebelde).

Joguei um dado para o meu destino e o número ao acaso não me tem atormentado: tenho sido feliz. Quando desejei minha possivel vida "fora" - interessante esta síndrome que nos legou a geografia e a revolução "nós dentro, o resto do universo fora" - não me ficaram muitas opções: teria podido passar o resto dos meus dias subindo os degraus do oportunismo ou enchendo papéis inúteis no Departamento de Nomeações do Ministério da Educação. Não me enquadrei em nenhuma e acabei por encontrar a receita para sobreviver ao Armagedon diário sem que minha alma se danasse muito, nunca mais pensei em ir-me.

Porém um dia não me bastaram minhas janelas fechadas em todo canto, minha estratégia quase perfeita de parecer invisivel, meu enorme regozijo ao descobrir que meus vizinhos não sabiam se eu estava ou não, e meu mundo dentro do intramuros: as íntimas continuavam sem me alcançar, o trabalho mal pago e - o cúmulo - uma caterva de personagens sinistros sobre a minha cabeça não deixava de repetir que eu era parte inerente de uma Revolução que se tornava cada vez mais velha, pesada e onipresente. Decidi fazer um blog porque minha bolha rachou, e tampouco analisei muito isso.

Hoje olho minha negativa de permissão de saída e me dá paz: não me doeu, não me supreendeu. É a longa linha com que tenho desenhado meu caminho, é a certeza de que não me equivoquei, é a prova que o governo cubano teve o trabalho de me entregar para que eu saiba que consegui, apesar do seu Partido e do seu Estado, dos seus seguranças e de sua impunidade, viver como uma mulher livre.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Confissões sobre uma viagem utópica



Quarta-feira 5 de maio

Passei estes dias arrumando os papéis para ir visitar a Alemanha, fui convidada para participar de um encontro com blogueiros de todo o mundo. Vacilei entre fazer ou não um comentário no blog antes de terminar com a papelada, meus amigos me convenceram e hoje, finalmente, depois de quase um mes e meio, publico isto com a sensação de tomar uma ducha fria a quarenta graus de temperatura.

Escrever sobre minhas estadias no Nono Círculo, que seria - isso os leitores do lado de lá já imaginam - o humilde, escuro, sujo e absolutamente indescritivel Escritório de Imigração e Estrangeiros do Município Plaza é um tremendo alívio. Justamente neste desagradável lugar - cujo nome excluiu minha existência porque eu nem sou estrangeira nem estou em trâmites de imigração - na terça-feira passei oito horas da minha maravilhosa vida na fila para ser interrogada sobre minha viagem, minha família, meu marido, meus estudos e - inclusive - o modo como eu me conecto à Internet.

Pode parecer excessivo o número de horas, é por isto que contarei em detalhes os acontecimentos a partir das oito e meia da manhã, quando meus pés tocaram a entrada da deteriorada casa de 17 entre J e K, e as quatro da tarde, quando finalmente saí com dor de cabeça, vontade de urinar, fome, sede, sonho, insolação e uma vontade terrível de mandar tudo para o caralho e ir dormir um mes.

Senhores, juro-lhes que um dia solicitando a permissão de saída tira a vontade de viajar de qualquer um.

Conto-lhes desde o princípio: quando o sol ainda não incendiava a praça eu cheguei na porta traseira da Imigração - já havia ultrapassado, não sem certos problemas, a porta dianteira umas semanas antes, essa em que se "solicita" o passaporte...já que de solicitação em solicitação nós vamos - e entreguei minha carteira de identidade quase no final, pois nesse momento soube que a fila havia começado as quatro da manhã. Por sorte uma divina surpresa me esperava: uma velha amiga exatamente na minha frente anunciou que ela também "solicitava", assim nos faríamos companhia mutuamente.

Antes das nove e meia já tinham todos os nossos papéis lá dentro: passaporte, carteira de identidade, carta convite e o bônus - eu melhor chamaria BONÓN - de 150 CUC ( pagos anteriormente, com ou sem a permissão de saída e devolvidos em caso de negativa). Como não há nenhum cartaz salvo o da H1N1 - ha, e um mural dos Cinco que faria Edward Munch vomitar - . Muitos dos que chegavam estavam em falta de algum papel ou não sabiam que depois das nove as carteiras não eram recolhidas, ou não tinham o BONÓN. (uma infeliz tinha o recibo porém não o BONÓN, de modo misterioso no banco não lhe haviam entregue). O mais deprimente eram os anciãos, com cajados na mão e os papéis na outra, desorientados, esmagados pela burocracia e pelo trânsito de pessoas de um lado para o outro.

As onze da manhã descobri que o banheiro estava fechado: - o público o tinha destruido - lembrou uma das de verde. As doze os trabalhadores foram almoçar até uma e meia, porém uma oficial ficou trabalhando por isso não me mexi, essa maldita sensação de que "vão me chamar agora e não vou estar"... As duas da tarde havia tanto sol que deixei de me abanar com o abanador para pô-lo em frente aos olhos. As duas e meia quase me urino toda e saí procurando um banheiro. As tres uma senhora diabética em frente a mim disse "não posso ficar sem tomar água". As tres e meia uma garota que havia marcado as quatro da manhã teve um ataque de histeria e se foi, por sorte regressou no mesmo momento. Quase as quatro me chamaram.

Uma militar muito jovem, com corrente, brinco, anel de ouro e umas unhas postiças de metro e meio me atendeu e me perguntou muitas vezes o mesmo sobre meus estudos, finalmente escreveu no meu processo: "teve aulas para dar aulas". Depois ficou obsessiva com isso de "Amizade pela Internet":

-Tenho muitos amigos pela Internet.
-Como te conectas à Internet?
-Na maioria das vezes em hotéis.
-Quais hotéis?
-Sobretudo o Cohíba e o Parque Central.
-Essa informação será verificada, se estás ocultando algo será negada tua permissão de saída.

Sorrí. De que maneira vão saber se eu me conecto num hotel ou se tenho amigos pela Internet? Nunca me pediram a carteira de identidade para comprar horas de conexão,e sobre minha correspondência privada, a não ser que hackeiem meu correio pessoal, não vejo outra forma de comprovar nada.

Depois indagou sobre minha mãe, meu pai, meu marido e por um instante suspeitei que meus cachorros Anastasia e Wicho também apareceriam em suas perguntas.

Para concluir sentenciou:

-Venha dentro de vinte dias para ver se te dão o visto de saída.
-Senhorita, dentro de vinte dias meu visto estará vencido.
-As informações tem que ser verificadas com tempo, espera aqui.

Foi-se por um momento e regressou:

-Venha na sexta-feira para saber.

Quando saí vi rostos que havia observado se distorcerem ao longo do dia. Gostaria de ter dito "adeus e sorte" à cada um, porém estava acabada. Nem olhei a garota das quatro da manhã, envergonhava-me de ter sido chamada antes dela. Umas gotas de água cairam logo, gotas grossas e poucas. Minha amiga me disse:

-Porque demoraste tanto lá dentro?
-Não sei, obrigado por me esperar, vamo-nos - e a peguei pelo braço para entramos "sem pedir permissão" debaixo da garoa.

Sexta-feira 7 de maio

Depois de uma hora soube que teria que voltar na quarta-feira seguinte. Será por acaso que coincide com dia em que devo voar?

Quarta-feira 12 de maio

Cheguei a uma e meia na imigração, cheia de pessoas como de costume. Perto das duas me chamaram - a verdade é que desta vez não posso me queixar. Contudo a voz veio de uma porta distante e não do local onde eu e todos os que esperávamos nossas permissões de saída havíamos entregue nossas carteiras préviamente.

Houve certa tensão na fila ao escutarem "Claudia Cadelo", como não tinha ideia de onde me chamavam, perguntei:

-Onde devo entrar?

Alguém me disse:

-Pergunta nessa porta, que é a adequada.

Entrei e uma militar bramiu:

-Porque abrem sem bater?
-Fui chamada.
-Ha, o teu é pelo outro lado.

Caminho para o outro lado, um homem me perguntou:

-Tu és a blogueira?
-Sim - respondi com um sorriso e com os nervos a flor da pele, pois o clima tinha se "eletrizado" claramente.

Já me esperavam na porta, depois de tantos dias de mal estar e maus tratos me pareceu claramente "não usual" a sociabilidade:

-Por favor, passe por aqui. Poderia fechar a gradinha quando entrar? Obrigado. Você não pode viajar no momento.

Saí e pude sentir a solidariedade de todos que fora esperavam serem "convocados", o rapaz que me havia perguntado se eu era blogueira me disse:

-Vivo na Espanha, sigo teu blog, não te deixes abater, que isto não te tire as forças.

-Não me tirará, obrigado.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Coisas da polícia



Existem pequenos espaços na minha cidade para a catarse cidadã, são instantes que desfruto plenamente mesmo que não sejam numerosos. Pode ser uma parada de ônibus, uma fila interminável para algum trâmite burocrático e absurdo ou simplesmente um táxi de dez pesos.

A rota Havana Velha-Vedado-Playa é famosa pelas dificuldades e demoras dos ônibus - claro, nada tão impressionante como a Vedado-Novo Vedado onde pegar "algo" é agônico - é por isso que a presença dos motoristas particulares alivia muito a ineficiência do transporte público. Com a chegada brutal do verão faz alguns dias, os que tratamos de nos mover nos irritamos sob o sol e a espera torna-se insuportável. Quando já não dá mais estendes a mão e optas pela via privada, sempre mais eficiente.

Outro dia eu estava em pleno sol na 23 e decidí por um táxi particular. Estava repleto e as gotas de suor corriam por todas as caras, contudo senti a baforada de liberdade desde que entrei, a conversação era muito animada e o tema: os abusos policiais.

O chofer narrava as peripécias sofridas por sua esposa, durante horas, nos calabouços de Zapata com C, havia sido "presa" por dois uniformizados quando se dirigia para sua casa com dois litros de yogurt, confiscados - para cúmulo - como "mercadoria de mercado negro" durante sua detenção. Uma senhora no assento de trás detalhava as condições inumanas de sua estadia na delegacia de Zanja, chegou alí por posse ilegal de quatro garrafas de cloro e duas de ácido muriático. Outro senhor, ao meu lado, lamentava-se, haviam desapropriado, no Casco Histórico, sua quota de pasta de dentes e cigarros que tratava de vender infrutíferamente.

Eu, da minha parte, contei-lhes como uma vez, enquanto desfrutava com alguns amigos, do mar em Guanabo, roubaram-nos todos os pertences e nos deixaram só as roupas de banho que levávamos conosco. Fomos fazer a denúncia na delegacia da PNR e como não tínhamos carteiras de identidade, ficamos detidos até cerca das dez da noite.

Cheguei rápido ao meu destino, o calor já não me importunava tanto e me deleitei, ao menos por uns minutos, com a inefavel satisfação que se sente quando alguém diz bem alto o que pensa.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Estudar línguas na Abraham Lincoln



Foto: Leandro Feal

Faz alguns anos estudei francês na Lincoln e tive que passar por uma entrevista. Já haviam me advertido que as perguntas seriam políticas e preparei minhas respostas. Não vou repetir o parágrafo que recitei, só direi que obtive minha matrícula sem contratempos.

Os anos passam e se essas coisas são esquecidas, essa história estava alojada no fundo do meu cérebro até que faz uns dias um amigo me chamou e me contou suas próprias peripécias para estudar inglês.

Acontece que ninguém disse à ele que havia uma entrevista, muito menos de temas políticos. Assim foi que chegou e sentou-se tranquilamente diante do professor que lhe correspondia:

-Boa tarde.
-Boa tarde. Podes me dizer o nome dos cinco heróis?
-Bemmmmm...sinto muito, não sei.

O entrevistador franziu as sobrancelhas e abaixou o olhar:

-Podes me dizer os pontos fundamentais da Batalha de Idéias?
-Não, não sei.
-Em que consiste a guerra midiática contra Cuba?
-Desculpe, não sei do que se trata.

O professor olhou de soslaio para os lados, viu que o entorno estava "limpo" e disse:

-Meu filho, há algo de política que tu saibas?
-Sim, porém não o que você me pergunta.
-Olha, assim não podes te matricular: vai para tua casa, prepara-te bem e volta aqui.

A morte que nunca poderia ter acontecido



Texto: Ernesto Morales
Jornalista cubano, radicado em Bayamo
ernestomorales25@gmail.com

As últimas imagens se extinguiram de um plano aéreo, visão de uma Ilha que mostrava um lado do malecón (quebra-mar) de Havana, e eu advertia que então meu estado de ânimo havia mudado drasticamente. O Noticiário Nacional da Televisão de segunda-feira, primeiro de março, o fez de uma tacada. Dez minutos antes eu vivia minha própria vida e pensava nos meus próprios mortos. Porém logo ao ver o desamparo nos olhos de Reina Luísa Tamayo, uma anciã de pele escura e palavras simples que neste momento, estou certo, ainda chora o que nunca u`a mãe deveria chorar - a morte do seu filho - não pude voltar a ser o mesmo de momentos atrás.

Se algo eu deveria agradecer às impudicas câmeras ocultas que, violando qualquer preceito ético e moral, filmaram esta mulher durante uma consulta médica, mostrando suas esperanças ingênuas àqueles homens de batas brancas à quem pedia que salvassem seu filho, é precisamente isso: haverem me revelado seu rosto. Conhecer seus traços para confirmar o que supunha de antemão: esta pobre mulher não pode, não poderá compreender jamais, a morte do seu filho Orlando Zapata Tamayo, o prisioneiro de consciência que em minha dolorosa Cuba deixou de respirar em 23 de fevereiro passado, após 86 dias de greve de fome. Reina Luísa conhece, no máximo, a dor e desde agora, provavelmente o ódio. Porém não muito de ideologia nem de política.

E não poderá compreender porque teve que cobrir com terra o maltratado corpo do seu filho porque nem sequer eu, nem nenhum dos seres civilizados que nos orgulhamos de nossa espécie, poderemos entender a morte de um cubano de 42 anos de idade que agonizou estertóreamente, lacerando seu corpo pela inanição, por reclamar com valentia épica, e porque não, um tanto ortodoxa, o que da sua simplicidade considerava como seus direitos inalienáveis. Em resumo, uma prisão digna.

Esta morte provoca vertigem. Desconcerta. Esta morte que não poderia acontecer dói naqueles que acreditamos no melhor do ser humano, que não são posturas ideológicas, mas sim sentimentos.

E me leva a questionar, inevitavelmente, por esta Ilha que muitos habitam com orgulho, outros com pesar, e outros com a certeza de que toda ela é sua propriedade privada. Penso na barbárie civilizada, e como em nome de causas justas, um Governo pode causar o pior naqueles sobre quem governa: desumanizá-los.

Alguém me disse há pouco: temos um país doente. E eu digo: sim, doente de desídia, de rancores, de sentimentos degradantes. Não pode estar são um país onde a Televisão Nacional exibe no seu noticiário principal material ignominioso, e onde milhões e milhões de olhos após vê-lo, milhões e milhões de cérebros após processá-lo, não se geram manifestações de protesto, e nem sequer movimentos importantes que questionem o fato. Que peçam explicações verdadeiras pelo que não foi dito, pelo intencionalmente escondido.

Penso: a autora desse material, a jornalista que emprestou seu intelecto para semelhante infâmia, vive neste nosso país, certamente tem família, talvez filhos. Esta jornalista está tristemente doente de mentiras.

Foi um erro repetido todas as vezes que se transmitiu, nos espaços informativos, o não aparecimento dos créditos autorais? O será que esta decidiu, por prudência de última hora, ocultar sua identidade por
trás do anteparo de uma voz em off? Muitos a identificaram, perceberam seu nome conhecido de jornalista da televisão, porém ela, de modo suspeito, preferiu suprimir. Pergunto-me como poderá dormir em paz, alguém que deveria ter a verdade como credo, a objetividade como santa e palavra de honra, manipulando desse modo um caso que em todos nós deveria provocar, ao menos, uma onda de vergonha.

CONTINUA...

sábado, 1 de maio de 2010

Meu último primeiro de maio...na Praça.



Imagem: Garrincha

Era 31 de abril, eu tinha dezessete anos e andava alegremente com uma amiga. Ela estudava medicina e era obrigada a marchar. Insistiu para que eu a acompanhasse e não consegui resistir: cedí.

Pelas tres da manhã chegamos ao ponto onde se encontraria com o resto da sua faculdade. Por azar os estudantes de Girón pertenciam - junto com os infelizes da Lenin - ao que de brincadeira chamávamos "os batalhões da infantaria ", ou seja, os primeiros a desfilar.

Ainda não amanhecia quando chegamos na Praça, fazia muitos anos que eu não ia às marchas e estava bem desatualizada. O primeiro shock foi um homem com um pulôver vermelho, saído do nada, que gritava para cada estudante:

-Ponha isso! Enquanto estendia um pulôver vermelho idêntico ao seu.

Não quis vestir e então aconteceu o inacreditável: dois desconhecidos se separaram do mar vermelho, levantaram-me pelos ombros e me depositaram na periferia da massa, antes de me soltarem definitivamente esclareceram:

-Se não queres usar não podes estar aqui.

Diferente entre os iguais, sem cor entre os vermelhos, só na multidão e jovem, comecei a choramingar. Assim cheguei na minha casa. Curiosamente escreví todo o acontecido na 4-86 que tinha naquela época, agora penso que talvez este poderia ter sido meu primeiro post.

O regresso do ovo



Uma das primeiras impressões que me causou a mudança de "presidente" foi o desaparecimento dos vendedores ambulantes e seus produtos - debaixo da minha casa. O ovo, os prendedores de roupa, as escovas, os jarrinhos, o queijo e o yogurt desapareceram naquela esquisita guerra contra o mercado negro com que Raúl Castro deu início ao seu mandato.

A partir desse momento comprar algo tão simples como um ovo começou a se tornar agônico, desde filas kilométricas até andanças à lugares remotos da cidade. O zum zum dos pregões afastou-se da minha janela e me resignei a prescindir deles.

Hoje as nove da manhã acreditei que sonhava, uma voz de mulher gritava:

-Ovo! Ovo!

Abri os olhos e me dei conta de que o som não vinha do meu subconsciente. Minha realidade se reconstituía novamente e as pessoas voltavam a se arriscar a vender: a necessidade ordena. Dei um salto e gritei:

-Vou!

Parecia que ao contrário de um pregão me haviam chamado pelo meu nome. Desci correndo as escadas para comprar a preciosa mercadoria. Até há pouco tempo seu preço era de dois pesos a unidade, porém o risco de negociar na rua é alto e se paga: agora um ovo custa dois pesos e cinquenta centavos.

Entrevista com Yoani Sánchez e Reinaldo Escobar: Um limite para todos os ódios



Entrevista: Ernesto Morales
Jornalista cubano, radicado em Bayamo
ernestomorales25@hotmail.com
Fotos: Claudio Fuentes Madan

I.

O dono da única emissora de rádio de uma pequena cidade, um dia decide usá-la contra seu vizinho. Não sabemos os motivos da sua inimizade, porém tampouco importam. O que importa é que este homem tem um poder significativo e que seu inimigo é um homem comum. Como parte do seu plano decide destruir a imagem do vizinho. Pensa: direi que é um depravado. Que é pedófilo. Daí para a frente usará os programas de maior audiência para acusar seu detestado vizinho de corromper sexualmente os meninos da comunidade. Buscará amigos e simpatizantes (que todo homem tem, sobretudo se é poderoso), e lhes dará o microfone: sim, esse homem é um corrupto, esse homem é um malvado. Diáriamente. Sem descanso. O dono da emissora se deleitará imaginando os novos argumentos para sustentar sua acusação sobre as perversões do vizinho. Este não poderá responder públicamente as mentiras: não terá maneira. Pior ainda: não terá maneira de provar que Não é um pedófilo, que jamais cometeu delito tão grotesco. Poucas coisas são tão difíceis de provar como a inocência.
Tu escutas o rádio de vez em quando e sabes o que dizem daquele homem, que também é teu vizinho. Não te importa muito, é verdade. Quando cruzas com ele, na rua, te saúda com amabilidade e sempre te pareceu um homem correto. Porém se numa tarde teu filho pequeno fica mais tempo do que o habitual brincando no parque próximo, correrás para buscá-lo com umm estranho nervosismo. Um nervosismo que não haveria acontecido, de certo, se não te houvessem advertido que aquele vizinho de que tanto o rádio falava, lía o jornal num dos bancos do mesmo parque.

CONTINUA