terça-feira, 31 de agosto de 2010

Ganhar a vida


Foto: Claudio Fuentes Madan

Chegou na G Na sexta-feira chegou na G para se confundir com o resto da juventude que vê suas madrugadas passarem esperando tempos melhores. Por alguma razão inexplicável a polícia somente permitia “estar” numa das calçadas da 23 - só Deus sabe o porque - e como tinha um encontro com uma garota na “zona proibida”, decidiu correr o risco cinco minutos antes do que perder sua oportunidade noturna.

O risco foi maior do que o calculado – ingênua e louca juventude -: um oficial lhe deu as boas vindas com um empurrão e lhe pediu a carteira de identidade. Nem bem a tinha pegado, o algemaram e antes que perguntasse “Por quê?” já estava no camburão.

Enfiaram-lhe num calabouço na 21 com C. Pensou que tinham esquecido de lhe soltarem as mãos. Contudo, uma olhada ao redor lhe permitiu comprovar duas coisas:

-Todos os detidos estavam algemados.
-Havia muitos detidos.

Como não tem nem vinte anos estava aterrorizado. Não conhece nada dos seus direitos e tampouco iria arriscar a noite para defendê-los. Igualmente sempre há uma terceira opção. Tratou de sussurrar as palavras mágicas para um uniformizado:

Compadre, o que tenho são cinqüenta pesos. Minha mãe está doente e não posso chegar muito tarde em casa.

Meia hora depois estava na sua casa. Resumiu-me a história com a moral da mesma:

-Fizeram uma tremenda trapaça na sexta-feira, éramos um monte de gente. Na próxima lhes dou o dinheiro dentro do camburão.

domingo, 29 de agosto de 2010

Impensável


Foto: Reina Luisa Tamayo e sua filha, por Claudio Fuentes Madan
Existem coisas que descartei no baú do “incompreensível”. Diria que renunciei, venceram-me, não agüentei, superaram-me. Nego-me a gastar meu cérebro um instante a mais tratando de encontrar alguma lógica, alguma, ao menos um mínimo sentido. Em sua maioria – confesso que são várias, demasiadas – ressaltam o regresso de Fidel Castro, as “medidas” de Raúl Castro, os signatários das cartas abertas da UNEAC, a sessão extraordinária da Assembléia Nacional, a fofoca com Elián González, a mente de Randy Alonso, os mortos de Mazorra, a permissão de saída, a utilidade “ideológica” da Mesa Redonda, a ética do médico de Orlando Zapata Tamayo, a vergonha dos que usam o uniforme verde-oliva hoje ou a moral dos militantes do Partido. A lista, juro-lhes, pode se tornar extremamente longa.
Contudo, existem outros tipos de eventos rebeldes para serem postos no saco, tampouco os entendo – inclusive os entendo menos -, porém não posso deixar, vez por outra, de voltar à eles, de analisá-los, desmembrá-los. Obsessionam-me, tiram o meu sono. Sinto que não deveriam ser, ou melhor, que Não podem ser. Minha racionalidade me diz que são impossíveis, meu cérebro grita desesperado que não existem pessoas que se prestem para espancar e impedir uma mãe de ir ao cemitério colocar flores ou render homenagem ao seu filho morto.
Ponho-me científica, quero analisar como num reality show: eu quero saber o que fazem cada um dos repressores (atores e diretores) de Reina Luisa Tamayo quando chegam em suas casas. Põem a panela de feijões? Abrem as janelas quando a tarde cai? Abraçam e beijam seus filhos antes de dormir? Dormem com sonho inocente ou os pesadelos atormentam suas madrugadas? Riem as gargalhadas? Olham-se no espelho, o que vêem? Gostam da chuva? Conversam com os seus vizinhos? Não consigo evitá-lo, minha mente faz seus cálculos e descobre que é irreal: ou melhor, não respiram oxigênio ou talvez não sejam mamíferos, sentencia. Então eu protesto: Não, já te disse, são humanos, humanos como os demais! Porém a outra eu, imparcial, não se deixa comover: têm que ser de outra espécie, têm que ser de outra espécie, têm que ser de outra espécie.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

O tunel


Da saga El Ciro versus La Seguridad del Estado


Sempre na salvaguarda da liberdade de expressão e da arte alternativa parti em missão operativa para Playa Jibacoa, para assegurar a atividade e repelir nossos amigos canalhas do MININT.

Que montão de gente e quanta subversão meu deus! Os seguranças não perderiam isto de modo algum, algo andariam tramando, porém....onde? Ativei o rastreador GPS para detectar algum segurança que eu houvese marcado com uma flecha anteriormente. O rastreador começou a me enviar sinais do subsolo. Caramba, caramba, o que faziam lá por baixo? Enquanto desempacotava a excavadora unipessoal* me dispus a investigar as profundezas.

Desce, desce e desce...surpresa!, um tunel! Haviam cavado um tunel que parecia se dirigir até a cena principal. Novamente me fiz transparente e avancei. Como sempre uma luz no final, qual seria a minha surpresa ao encontrar Fernando Rojas (viceministro da cultura) sobre um montão de caixas de dinamite e vários oficiais de alto escalão da segurança do estado brindando o fim da arte cubana. Nada, quando começasse o concerto e aquilo se enchesse iam acender a mecha e fariam desaparecer os artistas e todo o público ali presente, subvertido, além disso.

-Bonito hein? - disse enquanto me materializava. De repente o medo deu um nó nas gargantas e lágrimas afloraram nos olhos dos oficiais, retratando a lembrança de tantas batalhas perdidas e pesares por mim inflingidos em suas almas por mim. Porém o viceministro, que não me conhecia, acovardou-se:

-Hei, tu, fora daqui! Isto é uma operação encoberta - ousou me dizer.

-O resto que se retire por favor, tenho um assunto a tratar com este camarada.

Os seguranças partiram a toda velocidade.

O Festival foi excelente. Escuadrón Patriota provocou orgasmos, Los Aldeanos gastaram as cordas vocais de todos os que cantavam em coro suas canções e tudo parecia uma imensa igreja protestante da Carolina do Sul, só que multicor e na qual se pregava a liberdade. Por certo não creio que vejam Fernando Rojas durante alguns meses, é que tinha muita dinamite e come-la não iria ser nada fácil.

Até uma próxima aventura,

El Ciro

*Excavadora unipessoal: dispositivo para cavar e se mover sob a terra. Desenvolvido por El Ciro nos anos 80. Foi utilizado no filme norte-coreano "O flautista contra os ninjas", na cena da praia.

sábado, 7 de agosto de 2010

Mãe, o que o bem?


Com uma corda grossa e um pedaço de madeira tres meninos preparavam o cepo de tortura para uma lagartixa. Um deles segurava a vítima, que com os olhos muito abertos e o corpo rígido, esperava seu martírio sem muitas esperanças de sobreviver. Nesse momento eu passei e intervi, como é lógico, em defesa do pobre animal: dei uma explicação sobre cuidar dos seres vivos e agarrei o bicho com as mãos. Muito feliz pela minha boa ação busquei uma árvore adequada para o seu bem estar e o soltei entre as ramas. Até esse momento tudo foi bem típico, os meninos fazem experiências com pássaros e pequenos animais e os adultos tratam de educá-los no amor à natureza.

O inusitado veio vinte minutos mais tarde quando a mãe de um dos meninos bateu na porta para exigir explicações. Decidi, então, expor à essa mulher os mesmos argumentos que havia dado ao seu filho, e aparentemente me entendeu, pois não disse uma palavra, agarrou o menino pelos cabelos e o levou. Senti-me um pouco culpada, nunca esperei tamanho castigo por uma lagartixa, porém intervir mais uma vez nas questões morais desta família haveria sido excessivo.

O incidente me intrigou, não porque os rapazes brincaram de martirizar um réptil, mas sim porque eram tão inconscientes da sua má ação que acharam "correto" buscar o apoio dos seus pais. Quando eu era pequena os meninos do meu bairro matavam pardais às escondidas, eles sabiam que aquilo era mal. O que aconteceu quinze anos depois para que essa noção simples do bem e do mal haja desaparecido?

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Um dia em Santa Clara


Foto: Claudio Fuentes Madan

Há outra Cuba junto ao asfalto, anônima, dinâmica, falante e negociante. Tres horas num táxi privado pela rodovia de Havana até Santa Clara pode trazer mais informação do que todo um ano vendo o noticário nacional de televisão: preços no mercado negro, opiniões privadas de ex-militantes do partido que devolveram suas carteiras, turistas cubano-americanos contando suas anedotas e vendedores ambulantes. Poderia ficar nesta outra ilha mais quente e mais real, mais dura porém mais sincera que a da televisão cubana.

Santa Clara, contudo, parece sitiada e não uma cidade em festas carnavalescas. Como um diabólico natal sem cores, em cada porta, muro e janela está o mesmo cartaz com a mesma inscrição: Estamos em 26. A cidade se fundiu num número, num mesmo número, até o infinito da província. Alguém pode ter a sensação de haver chegado ao país das cifras, ao domínio do "Rey 26". Com menos sol e mais ar poderia ser o começo de um excelente filme de terror.

Coco seria uma Alicia no país da Rainha Vermelha, sua porta é a única livre da maldição do dois mais seis, e a cada instante nosso diálogo se interrompe porque alguém chega na sala para lhe desejar sorte, saúde e bem estar. Alicia, sua mãe, desespera-se ante a azáfama solidária que interrompe o repouso e a disciplina à qual seu filho deveria estar submetido. Todavia Fariñas é um ser excepcional: seu corpo é um sulco de marcas e cicatrizes, púrpura e buracos, o trombo marca seu pescoço e seus pés inchados retém muito líquido. Não caminha, porém quando fala da cadeira de rodas é como se voasse. Senti dor por esse corpo impotente para acompanhar os passos de uma alma tão grande.

Sair de sua casa é quase deixar o paraíso, sem transição entre levitar com suas palavras durante horas para logo cair num charco de asfalto em meio ao terminal provincial: uma televisão de 15 polegadas em mute que invariavelmente apresenta um close up de Raúl Castro, cartazes e bandeiras com o maldito 26 abarcando todo a extensão de alcance do olhar (chega um momento em que tudo se torna abstrato e se esquece que esse número é uma data, só uma data) e uma temperatura impossivel para a vida humana que obriga a sentar no chão para se poder respirar. Quatro horas depois conseguimos pegar um transporte para La Habana.