quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Damas de Branco

Um documentário de Ciro Díaz e Claudio Fuentes
Música: Eric Sánchez



Baixe aqui o documentário

Do baú de recordações


Foto: Claudio Fuentes Madan

Nestes dias conversei com alguns jornalistas que me disseram que as pessoas falam do novo período especial. Por sorte ainda não escutei estes comentários arrepiantes, porém recordei alguns detalhes do que era para mim, na minha mente de menina de seis anos, o apocalipse.

Na primeira vez que escutei essas palavras estava no primário esperando pelas bolachinhas e pelo refresco do recreio, quando uma amiga me avisou desesperada que "nunca mais teríamos merenda". Com cara de tragédia - eu era uma gorda naquela época e a notícia caiu como um raio - disse um "Por que?" típico da minha idade; e a resposta, típica também, não me disse muito: "estamos no período especial".

Por uns meses "período especial" para mim foi o jejum entre o desjejum e o almoço. Com o tempo generalizei um pouco o conceito: não ter sapatos, não ter o que comer, ver minha casa arruinar-se e a minha mãe e o meu pai desesperados, este último era o mais estranho de tudo. Naqueles anos ambos eram militares e nunca os escutei fazerem comentários "diversionistas". Aguentaram estóicamente e a única coisa que conseguiram esconder de mim foi o rumor da chamada "opção zero".

Passou o tempo e chegou o ano de 94, mais confuso ainda. A explicação familiar para o evento de ver 10 balsas passarem todos os dias na frente da minha casa foi típica: uns contrarrevolucionários. O vídeo dos distúrbios no Malecón eu vi com onze anos na casa dos meus tios, enquanto todos davam suas opiniões - todos eram do partido - eu me dizia que havia algo nessas ruas de que não estavam falando. Não sei porque me deixaram vê-lo, suponho que não imaginaram que eu pudesse ler entre linhas.

Nessa época o dolar foi legalizado porém passaram dois anos para que eu pudesse ver um entrar na minha casa. No primário fiquei relegada a uma nova classe pois para mim não havia terminado o "período especial". Os meninos compravam sorvete numa loja em moeda estrangeira no lado da escola e alguns pais vendiam guloseimas na porta. Um dia cheguei em casa e disse à minha mãe:

-Mami, me dá dinheiro para comprar um sorvete no intervalo.
-Não tenho dinheiro.
-Não sejas mentirosa, trabalhas das 8 da manhã até as sete da noite. Sim, tu tens dinheiro, não queres é me dar.

Segundo minha mãe não tive resposta imediata, ainda que depois tenha preparado um pequeno discurso no qual adaptou noção de "salário em moeda nacional"; naqueles tempos o dolar estava a 120. Uns dias depois me conta que eu disse:

-Mami, já sei o que tens que fazer para que ganhes dinheiro: tens que vender doces na porta da escola.

Quando as pessoas me perguntam se quero ter filhos, este é o tipo de diálogo entre mãe-filho que me vem à cabeça e que, sem dúvidas, quero evitar.

Nota: Aldo, de Los Aldeanos, já foi libertado. O ameaçaram porém no final lhe devolveram o computador e saiu sem acusações.

domingo, 27 de setembro de 2009

O cidadão independente


Foto: Omni-Zona Franca, Luis Eligio.

Umas lágrimas negras debaixo dos olhos e uma camisa, negra também, com dois dizeres impressos: na frente "Não há paz sem liberdade" e atrás "Bloqueio dentro -Bloqueio fora. Até quando?".

Chegou sozinho na praça no domingo e por segundos foi um a mais. "Fui ver meu concerto", disse-me um pouco surpreso quando lhe perguntei porque não havia me chamado. Como a performance faz parte de sua vida diária há mais de dez anos, novamente decidiu produzir arte.

Interagir com o público é um dos principais objetivos da arte comportamental, assim que a priori a performance foi um êxito. Lamentavelmente a Segurança do Estado, sempre tão egocêntrica, decidiu que o público seria só ela.

Meteram-lhe aos empurrões dentro de uma patrulha, com a inevitavel lesão no pescoço por selvageria. Várias delegacias de polícia , sempre pela porta de trás - a dos que não cometeram delitos mas que entram do mesmo modo. Várias sessões de interrogatório com perguntas absurdas que não conhecem posições moderadas: a PNR está na base da batalha, em alerta VERMELHO frente o inimigo invisível, que potencialmente é cada cidadão que habita esta ilha.

Luis Eligio teve o valor de chegar à praça com o cartaz que todos levamos dentro impresso em sua roupa. Teve o valor de assumir sua decisão livre e só com sua consciência. Teve além disso a imensa força de assumir-se como cidadão único e independente, responsável por suas ideias e obras. Com certeza, também teve a tremenda sorte de não sentir a força bruta dos corpos repressivos descarregarem toda sua fúria contra sua pele e isso é algo que, certamente, eu encorajo a evitar.Por favor Eligio, na próxima vez chame-nos, pelo menos para acreditarmos que se somos mais poderemos proteger-te.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Doa a quem doer: EsKoria e Porno Para Ricardo em concerto



Parece que neste ano Porno Para Ricardo quebrou seu recorde de concertos, isso quando as autoridades impõem que tu não existes públicamente: na hora já nao és, o que dá no mesmo, és livre. E assim chegou Porno Para Ricardo à um abrigo fora de Havana.

Quando as bandas terminaram de tocar, disse aos organizadores: quisera que Havana só por um dia, tivesse um público e um espaço como o que vocês têm. Claro que é um oasis no meio do inferno, pões um pé fora do sítio e a polícia te leva.

Aqui estão as fotos e um vídeo do concerto. Oxalá pudesse colocar tudo, tive muito trabalho com a seleção:






segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Chegou o dia do concerto


O céu nublou pelas 4 da tarde, era o que faltava para que eu me sentisse perfeita. Creio que Juanes fez seu concerto pela paz e pela liberdade, ao menos todos os que estávamos por vontade própria o sentimos assim (já sabemos que houve quem trabalhasse esta tarde de sol a sol não se sentindo livre).

Gostei de escutar na Praça palavras como "mudança", "o futuro é de vocês os jovens", "Cuba livre", "exílio", "a família cubana unida". Do mesmo modo que embaixo, lá encima no palco uns foram mais livres que outros. Como a liberdade as vezes é uma opção pessoal, aconteceu que a deixaram passar.

Depois do concerto um amigo me dizia que de todas as maneiras muitos não puderam participar: alguns foram pressionados, outros censurados, outros não podem entrar em Cuba e muitos sofrem nas prisões. É certo, mas também o é que uma andorinha não faz primavera, e não podemos pedir `a Juanes o milagre dos pães e peixes, já conseguiu bastante em ter por algumas horas "O ôlho de Saurón" em branco.




O direito de dizer "NÃO" *



*Manifesto do Congresso pela liberdade da Cultura , Berlim, 1950
Tirado de "Anatomia de um mito e outros ensaios" de Arthur Koestler

1-Sustentamos que é por si mesma evidente que a liberdade intelectual é um dos direitos inalienáveis do homem.

2-Essa liberdade se define antes de tudo pelo direito do homem a sustentar e a expressar suas próprias opiniões, e em especial as opiniões que diferem das dos seus governantes. Privado do direito de dizer "NÃO", o homem se converte em escravo.

3-A liberdade e a paz são inseparáveis. Em qualquer país, sob qualquer regime, a imensa maioria das pessoas comuns teme a guerra e opõe-se a ela. O perigo de guerra se torna agudo quando o governo, ao suprimir as instituições democráticas representativas, nega à maioria o direito de impor sua vontade de paz.
Somente se pode manter a paz se cada governo se submete ao contrôle e inspeção de seus atos por parte do povo que governa, e concorda submeter todas as questões que encerram imediato perigo de guerra a uma autoridade internacional representativa, cuja decisão haverá de acatar.

4-Sustentamos que a principal razão da atual insegurança mundial é a política dos governos que, enquanto falam a favor da paz, negam-se a aceitar esse controle duplo. A experiência histórica prova que é possivel preparar e afastar guerras sob qualquer palavra de ordem, inclusive a da paz. As campanhas pela paz não respaldadas pelos atos que garantam sua manutenção são como moeda falsa posta em circulação com propósitos desonestos. A cordura intelectual e a segurança física só podem retornar ao mundo se essas práticas forem abandonadas.

5-A liberdade baseia-se na tolerância ante as opiniões divergentes. O princípio da tolerância não permite lógicamente a prática da intolerância.

6-Nenhuma filosofia política nem nenhuma teoria econômica pode pretender ter o direito exclusivo de representar a liberdade em abstrato. Sustentamos que há que se julgar o valor dessas teorias pela medida de liberdade concreta que conciliam na prática, para o indivíduo.
Sustentamos mesmo assim que nenhuma raça, nação, classe ou religião pode pretender ter direito exclusivo de representar a ideia de liberdade, nem direito a negar liberdade à outros grupos ou credos em nome de nenhum ideal fundamental ou de nenhum objetivo elevado.
Sustentamos que há que se julgar a contribuição histórica de toda sociedade pela medida e qualidade de liberdade que seus membros efetivamente gozam.

7-Em épocas de emergência, impõem-se restrições a liberdade do indivíduo em nome do interesse real ou suposto da comunidade. Sustentamos que é essencial que estas restrições se limitem a um mínimo de ações claramente especificadas; que sejam consideradas recursos provisórios e limitados, com caráter de sacrifícios; e que as medidas que restringem a liberdade estejam sujeitas a ampla crítica e ao controle democrático. Só deste modo poderemos ter uma razoável segurança de que as medidas de emergência que restringem a liberdade individual não se tornarão numa tirania permanente.

8-Nos estados totalitários, as restrições a liberdade não se propõem, nem são consideradas publicamente, como sacrifícios impostos ao povo, senão que, ao contrário, são apresentadas como triunfos do progresso e realizações de uma civilização superior.
Sustentamos que tanto a teoria como a prática desses regimes contraria os direitos básicos do indivíduo e as aspirações fundamentais da humanidade em conjunto.

9-Sustentamos que o perigo desses regimes é tanto maior quanto seus meios de se imporem superam em muito o de todas as tiranias anteriores conhecidas na história da humanidade. Do cidadão do estado totalitário é esperado - e é obrigado - não só que abstenha de delinquir, senão que conforme todos os seus pensamentos e ações a um molde indicado de antemão. Persegue-se e condena-se os cidadãos na base de acusações tão pouco específicas e genéricas como "inimigos do povo"e "elementos socialmente indignos de confiança".

10-Sustentamos que não pode haver um mundo estável com a humanidade permanecendo dividida, com respeito a liberdade, em "possuidores" e "despossuidos". A defesa das liberdades existentes, a reconquista das liberdades perdidas, (e a criação de novas liberdades) são parte da mesma luta.

11-Sustentamos que a teoria e a prática do Estado totalitário são a maior ameaça que o homem deve enfrentar no transcurso da história civilizada.

12-Sustentamos que a indiferença ou a neutralidade frente a tal ameaça equivale a uma traição a humanidade e a abdicação da mente livre. Nossa resposta a essa ameaça pode decidir a sorte do homem durante gerações.

13-(A defesa da liberdade intelectual impõe hoje uma obrigação positiva: oferecer nossas respostas construtivas aos problemas do nosso tempo).

14-Dirigimos este manifesto à todos os homens que estejam decididos a recuperar as liberdades que perderam, e a manter (e ampliar) aquelas de que desfrutam.

domingo, 20 de setembro de 2009

Santa Clara - La Habana (2)


Imagen: Hamlet Lavastida, exposición agosto 2009 numa galeria particular.

As seis começaram a chamar pela lista de espera. Em favor do terminal de Santa Clara tenho que dizer que tem luz elétrica. O de Havana, certamente, nos dias em que passei por ele (para ir e regressar) sofria de um apagão generalizado que impedia, por exemplo, de ver o vaso sanitário do banheiro, que se encontra no porão.

As seis e meia saiu o ônibus, meu assento lamentavelmente tinha a alavanca quebrada e ainda que houvessem outros assentos vazios, o chofer não me deixou trocar. No momento estava dormindo.

No meu sonho comecei a sentir um estranho fungar nos meus pés e mãos, acompanhados de um calor insuportável. Abri os olhos para comprovar que era dia, que o ônibus estava parado debaixo do sol, que tudo estava trancado e que um cachorro da polícia farejador de drogas enfiava a cabeça por todos os lados. Levei uns dois minutos para entender que não era um pesadelo.

Um delator havia chamado a delegacia de polícia de Cólon, em Matanzas, para advertir que em nosso desafortunado ônibus algum infeliz havia tido a péssima ideia de levar carne de vaca. Não podíamos descer, porém o policial não compreendia que tampouco podíamos respirar. Não sei nada sobre carros, porém me parece um pouco estranho que pelo motivo de um veículo estar parado o funcionamento do climatizador cesse; todavia tampouco quis perceber alta dose de sadismo no chofer e nos policiais.

Tiraram a bagagem do porta-malas para que o animal metesse o focinho sem obstáculos. Parecia que estávamos num filme mexicano e que iam tirar 100 libras de heroína pura do baú. Prontamente o cachorro reagiu, havia encontrado o que parecia ser o objetivo da busca: A CARNE. Um rapaz de gorro branco foi apontado temporariamente como suspeito principal do delito (possuía uma valise), desceram-no do ônibus e o cachorro deu uma investida profunda para cheirá-lo.

Má sorte para os policiais, oxigênio para nós e frustração para o cão: a carne descoberta mostrou-se ser de porco. Ciro inevitavelmente buzinou para todos os viajantes: quem haveria sido o delator...hein?. O rapaz ria-se nervoso, a gente se entreolhava com os olhos esbugalhados e gotas de suor na testa, eu voltava a dormir enquanto pensava que entre a minha vida real e meus sonhos, o absurdo não está tão defasado.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Santa Clara - La Habana (1)


Imagen: Hamlet Lavastida, exposição agosto 2009 em galeria particular.

Ontem cheguei de Santa Clara num ônibus Yutong dos novos, com ar condicionado. A espera e a viagem poderiam ter sido perfeitas, porém lamentavelmente as instituições, as empresas e os serviços deste país, ainda que lhes injetem milhares e milhares de dólares, não podem deixar de arfar em seu agônico suplício estatal.

A uma da manhã cheguei na estação de Santa Clara, como não tinha passagem de volta (impossível comprá-la em Havana) inscrevi-me na lista de espera para o primeiro ônibus por ordem de chegada, serão chamados os que não tem passagem e ocuparão os lugares vagos que restarem.

A sala de espera estava quase vazia, uns meninos dormiam sobre as pernas de suas mães e outros cabeceavam em desconfortabilíssimos assentos de plástico, um chegou a perguntar se o designer sentia um obscuro e tortuoso ódio contra a humanidade. Surpreendeu-me poder fumar e também dormir no chão, como haviam meninos fumei fora e não me acomodei no chão porque me parecia inumano. Coloquei minha bolsa na cadeira ao lado e recostei, não era uma cama porém depois de uma hora num terminal, apoiar a cabeça é como entrar no paraíso. Por uma desgraça o paraíso terreno é só para privilegiados, chegou a CVP da sala e me despertou:

-Não podes apoiar-te na cadeira ao lado.
-Porque?
-Porque é o regulamento, se chega um inspetor me repreeende.
-Essa lei é um pouco fascista, senhora. Sabia que na STASI uma das torturas que utilizavam era não deixar os prisioneiros dormirem? Isso não incomoda o inspetor?
-Além disso não podes colocar a bolsa na cadeira ao lado, estás ocupando um lugar que é para pessoas.
-Se alguém vier a tiro, porém aqui está vazio, não creio que isto aconteça.
-Tens que tirá-la, é TRATAR MAL A PROPRIEDADE SOCIAL.
-Desculpe porém você compreeenderá que isso não é TRATAR MAL A PROPRIEDADE SOCIAL, é absurdo. Sinto muito: não vou tirá-la.

Estava segurando o riso com isso de TRATAR MAL A PROPRIEDADE SOCIAL. Já sabia que ia me custar caro discutir com uma funcionária estatal. Com estes personagens a coisa pode se tornar muito grave, ganham um salário de miséria porém tem o poder absoluto em 5 metros quadrados e o exercem com a mesma irreverência, força e abuso de poder com que viram o "Poder Absoluto Maior" aplicar a eles, um tipo de vingança, suponho.

Ficou histérica e começou a gritar, disse-me que eu não podia fazer o que me dava vontade, que se a diretora não suportava este tipo de atitude, quem eu pensava que era e que por minha culpa não lhe iam tirar a insígnia porque primeiro me matava.

-Perdão, se eu deixo minha bolsa aqui tiram a sua insígnia? Houvesse começado assim , já a tiro.
-De mim ninguém tira a insígnia! Tu tiras a bolsa porque é TRATAR MAL A PROPRIEDADE SOCIAL ou te tiro a pontapés daqui!

Segurei a gargalhada, começou a me dar um pouco de pena aquela mulher que já nem sequer preocupava-se com a carteira, mas sim em descarregar seu poder de ferir contra mim. Olhei ao redor e vi que as pessoas começavam a sorrir. Tampouco pude negar que a palhaça de uma CVP com uniforme cor de canela diarréia num terminal de ônibus as tres da manhã é o mais triste do mundo. Tratei de acalmá-la.

-Olha, já tirei a bolsa, pode acalmar-se.
-Veja bem, se te vejo tratando mal a propriedade social ou dormindo chamo a polícia e eu mesma te pego pelos cabelos e te jogo no camburão.
-Olhe, já me despertou e evidentemente não dormirei de novo, a bolsa foi tirada porque não quero que você fique sem a insígnia e por outro lado, não me ameace, não tenho medo de você nem da polícia. Além disso, quando chamar a delegacia me avisa, quero escutá-la dizer as tres da manhã que solicita uma patrulha para uma garota que tem uma bolsa na cadeira ao lado, é um delito sem paralelo na história, ficaria encantada em ouvir a resposta que lhe dará o oficial de plantão.

Foi-se, porém estava fora de si, continuou gritando por algum tempo por todo o pátio, num momento acercou-se da janela e me repreendeu:

-Acontece que eu quero é que viajes, por isso é que te deixei.

Tive que controlar-me fortemente para não responder-lhe "Eu também tirei a bolsa para te ajudar, estamos quites", porém temi que lhe desse um derrame cerebral nesse mesmo instante. O resto da madrugada passou me vigiando, acordou uns quantos mais que dormitavam na cadeira e conseguiu lá pelas cinco e meia, que metade da estação se revirasse desdenhosa no chão enquanto que os mais escrupulosos fumavam tranquilamente em seus assentos.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Os pequenos detalhes que tornam pior


Na quinta-feira bateu-me à porta um senhor da empresa de gás, informa-me que vão trocar meu marcador e que tenho que lhe entregar o último recibo pago. Depois de uma hora virando a casa pelo avesso deixo de esforçar-me: perdi. Desço e lhe informo.

-Olha, sinto, porém não encontro o recibo.
-Então não posso trocar teu relógio.
-Não tem problema, não troque.
-Tenho que trocá-lo.
-...?

O triste é que decidiu trocá-lo, e enquanto tentava acabou por estragar meus já deteriorados encanamentos. Não se deu ao trabalho de subir as escadarias para me informar, como sua brigada não é de "conserto" senão de "troca", tampouco me resolveu o desastre. Cortou meu abastecimento, reportou à oficina de não sei o que, a qual depois enviaria uma brigada de "conserto" ...em menos de 24 horas (esta última é a parte da ficção científica).

Na sexta-feira a tarde - depois de 24 horas prescindidndo do fogo que todos sabem o que representa na longa vida do homo sapiens sapiens e aterrorizada pela terrível chegada do fim de semana - saí à rua para "resolver" com um particular. O que aconteceu é que o amável senhor da empresa não havia rompido um tubo qualquer: 4 metros e 20 cm de um encanamento de 3/4 de zinco galvanizado que não se encontra "nem nos centros espirituais".

Um dos meus vizinhos mais solidários e bons, tão bom que ainda acredita no Aperfeiçoamento Empresarial Socialista, passava o dia me dando os informes da empresa de gás, que chamou durante dois dias seguidos. Suponho que em algum momento tenha mandado bem longe a lacônica recepcionista, que invariavelmente respondia: isso já está encaminhado, ligue para XXX (onde jamais havia ninguém).

No sábado a tarde pusemos mãos à obra, reconstruimos o tubo com outro encontrado no terraço, liguei o que ficava no meu encanamento diretamente na rua e fiz, depois de tremenda angústia, um cafezinho. Contudo estou esperando que coloquem o marcador.

domingo, 13 de setembro de 2009

Cansei-me de ouví-los


Imagem: Luis Trápaga

Até agora havia ignorado completamente o assunto, porém o cântaro tantas vezes vai à fonte que se quebra: o meu acaba de quebrar Juan Formell.

Mais além das dissertações sobre as diferentes causas - pressões, ameaças ou compromissos - que levaram Carlos Varela, Amaury Pérez e Juan Formell a falar mal de Porno Para Ricardo em público, para mim o que conta é a consequencia: a grosseria, a moral dupla e o descaramento. Lembro que uma vez fazem já uns tantos anos tive uma discussão bastante deprimente com um amigo que me assegurava que Silvio Rodríguez era deputado na Assembléia Nacional porque o haviam ameaçado, talvez, de matar sua família.

Naquele momento eu estava injuriada, porém hoje o que me faz rir é ver até que ponto nós - o público admirador e seguidor - somos capazes de chegar para justificar a vergonhosa atitude de alguns de nossos artistas e intelectuais. Suponho que sejam as mesmas justificativas que fazem com que hoje Pablo Milanés seja lembrado pelas suas declarações na Espanha e não pelas suas declarações ao Noticiário Nacional de Televisão depois do seu concerto no Protestódromo: este concerto me realizou como revolucionário ( ou algo no estilo), enquanto Gorki estava no seu terceiro dia na prisão e Ciro era interrogado pela Segurança do Estado.

Como dizem por aí de brincadeira: com um papel de dez minutos em Brainstorm, Alberto Pujol se limpou de haver sido durante mese El Tabo. Com cinco minutos de entrevista Formell, Varela, Silvio e Pablo conseguiram que eu, ainda que continue admirando sua obra como artistas, tenha me cansado de ouví-los (jamais gostei de Amaury, portanto não o incluo na lista).
Nota do tradutor: Pujol interpretou um papel (El Tabo) na novela cubana contemporânea similar ao da vida real do frances VIdocq, um criminoso do século 18 que tornou-se policial, o qual inspirou Victor Hugo. Brainstorm é um recente filme cubano sobre a manipulação da imprensa.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Superdose para meus netos: Popularidade e Melhor Blog


Este primeiro concurso de blogs cubanos foi vanguardista em muitas coisas, porém uma das mais simples e com certeza das mais emocionantes é que é a primeira vez que um blog premiado dentro da ilha pode participar da cerimônia de premiação (não tive que solicitar permissão de saída). Refiro-me com certeza a Yoani Sánchez, à quem já foi negado subir num avião cinco vezes em apenas dois anos.

Seu prêmio do concurso Bitácoras como o melhor blog em Língua Espanhola, um laptop, foi o prêmio que eu recebí ontem na qualidade de Melhor Blog. Por sorte Orlando Luís falou primeiro no final da cerimônia e tive o impulso de começar a chorar. Quando parei para dizer umas palavras, que não recordo em absoluto, pelo menos não fazia beicinho ainda que depois me disseram que estava "vermelha como tomate".

Uma Ilha Virtual foi possível graças à perseverança dos organizadores e a solidariedade que existe dentro da blogosfera cubana, à todas estas pessoas meu agradecimento e minha admiração.









quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Concurso Uma Ilha Virtual











Num determinado momento da votação on line do concurso Uma Ilha Virtual, não entrei mais porque ficava nervosa. Haver ganhado o prêmio de popularidade do primeiro concurso de blogs que se fez dentro da Ilha é o tipo de coisa que, sem dúvida, planejo contar aos meus netos.

Estou muito contente e agradecida a todos os leitores que votaram em Octavo Cerco. Se voltássemos a roda do tempo e eu tivesse oito anos e cursasse o quinto grau, não haveria maneira de convencer os meus companheiros de classe de que um dia eu ganharia algo relacionado à popularidade: se houvesse dito a mim mesma dois anos atrás, menos ainda.

Logo teremos o resultado do júri, o 09/09/09, desde este pequeno espaço da Internet numa ilha sem Internet: muita sorte à todos os concorrentes, felicitações a todos os organizadores (especialmente à Yoani Sánchez) e mil agradecimentos aos leitores, que sem eles, nada disto teria sentido.

Procissão da Virgen de la Caridad del Cobre



Quando cheguei na Igreja não podia filmar porque a única coisa que via ao meu redor eram espáduas. Arrisquei-me a levantar o braço o mais que pude para filmar as cegas, então sentí que u`a mão me agarrou o pulso e uma voz desconhecida soou na minha nuca:

Eu te apoio, para que possas filmá-la quando sair.



Nem sequer pude ver a cara da garota que me ajudou, eramos milhares de pessoas e ainda que o tráfego não tenha sido desviado préviamente para facilitar a procissão, os motoristas cautelosos faziam fila na rua Reina, esperando que todos os que caminhavam dando vivas à Virgem terminassem sua marcha



Escutei "Viva a Virgem de todos os cubanos" e "Liberdade". Não as vi, porém as pessoas diziam que as Damas de Branco iam a uns metros de nós...éramos tantos que não distinguia a dois metros de mim. Quando caminhei atrás da Virgem pensei em todos os que durante anos sonharam em marchar com ela porém era proibido e em todos o que hoje não puderam porque não são livres para pensar diferente.

domingo, 6 de setembro de 2009

Back to my proxy


As pessoas que lêem os blogs em Cuba, o fazem geralmente desde vocescubanas. É mais facil porque na plataforma já estão juntos todos os blogueiros e não se tem que gastar tempo abrindo muitas páginas ao mesmo tempo. O tempo online em Cuba vale ouro, seja já porque custa muito caro, porque alguém está navegando "prestao" graças a um sócio ou porque está no trabalho e aproveita os segundos em que sabe que não terá um olhar sobre os seus ombros.

Uma nova plataforma independente para muitos blogueiros era a possibilidade de administrar seus sítios (Yoani Sánchez, Reinaldo Escobar e Miriam Celaya). Para mim especificamente foi o desafio de administrar em Wordpress e a possibilidade de ser lida graças ao software livre dentro do meu país. Para outros blogueiros como Pablo Pacheco significava a certeza de que desde Havana seus posts seriam publicados e lidos.

Com certeza faz dias que não podemos entrar em Voces desde Cuba; este bloqueio não muda muito nossas condições: administrar é um luxo e quase todos os blogueiros têm um amigo que os ajudam de algum lugar do mundo onde o governo não se preoocupa com que seus cidadãos naveguem livremente na Internet. Seja de Havana ou do Polo Norte, nossos textos continuarão sendo publicados apesar da paranóia governamental.

Para os leitores da Ilha: por cada censor pago na Internet que existe no mundo, há um hacker voluntário. Voces Cubanas abre com proxy, comprovei que estes tardam em serem superados em Cuba, assim é que lhes deixo uma lista dos que agora mesmo estão funcionando:

sábado, 5 de setembro de 2009

Informação sobre minha desinformação

Desde há uns dias que Octavocerco não é bem visualizado. Ainda não tenho a menor ideia do que está sucedendo, enquanto que tento consertá-lo sem ficar muito tempo online por razões óbvias.

Talvez seja casual que setembro tenha começado com excitação: ganhei o concurso de popularidade Uma Ilha Virtual graças a vocês, faz uma semana que Voces Cubanas foi bloqueado para o interior de Cuba e agora isto...deve ser casualidade, ou talvez astrológico.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Mais outra crise?


Foto: Claudio Fuentes Madan

Caminho pela rua e a única coisa que ouço é o assunto: "as lojas", parece que a técnica é infalível. Ví alguns documentários sobre ações cívicas para pressionar o governo e em vários países as pessoas tem utilizado o boicote econômico para conseguir mudanças poíticas ou sociais (África do Sul e Chile).

O que acontece é que tenho a impressão de que em Cuba a coisa tem outra dinâmica: o governo usa o boicote econômico para nos pressionar. Faz cerca de um mes que algumas lojas em moeda conversível (as únicas onde se pode adquirir a cesta básica) fecharam e as que permanecem abertas vão se esvaziando pouco a pouco. Outro dia buscava desesperada qualquer tipo de detergente, e cheguei dando voltas numa loja onde o único que havia eram prateleiras e prateleiras de limpa cristais (com dez marcas diferentes). Quem compra cristais em Cuba?

O melhor são as conclusões das vítimas, escutam-se, como sempre, várias versões:

1-Todas as lojas vão fechar pouco a pouco para passarem a fazer parte das FAR (forças armadas revolucionárias).
2-O que acontece é que nenhum investidor estrangeiro radicado em Cuba está vendendo seus produtos porque não os deixam sacar o dinheiro que têem nos bancos e não podem fazer transações com seu país.
3-O problema é que Cuba já não tem dinheiro para comprar produtos, o que há nas lojas são os produtos que estavam armazenados e que não tinham saída.
Gosto das tres porque tem relação com os limpa cristais, e pergunto-me a quem pode ocorrer comprar tanto limpa cristal num país onde quase todas as janelas são de madeira.

Por outro lado parece que os estrangeiros não são os únicos que não podem sacar seu dinheiro do banco: disse-me um amigo que para cobrar uma conta de 5000m pesos que seu pai lhe deixou de herança, tem que fazer tanta burocracia, que já nem sabe se algum dia poderá ter o dinheiro em suas mãos.

Como nada disto se comenta no Granma não sei qual das versões é verídica, semi-verídica ou completamente falsa. Agora tenho que caminhar seis horas para poder limpar os pratos a noite. No que vou e venho pelas ruas me pergunto: o que ganha o PCC e Raúl Castro em terem a economia deste país neste estado? Na crise número qual estamos entrando? Porque não há papel higiênico numa só loja em toda Havana? Estes movimentos malabarísticos da economia são causados pela crise ou são o popularmente chamado bloqueio interno?

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Causalidade policial


Foto: Claudio Fuentes Madan

Acabo de chamar um amigo e fico sabendo boquiaberta que dormiu numa delegacia de polícia. Meu amigo é pintor, tem 24 anos e é unanimemente reconhecido como "o melhor que há". Como sei que é dificil que se meta em problemas descarto as possibilidades mais comuns (as que temos vivido quase todos, menores de 30 anos e que não somos tão bons): esquecimento da carteira de identidade, brigar com alguém, gritar Abaixo o comunismo, Fidel, Raúl, A Segurança do Estado - numa rua escura ou andar com palavras "conflitivas"no pulôver.

Descartadas as mais comuns ficam as mais rebuscadas. Estas raras vezes tem seu colofão (inscrição nos fins dos manuscritos) na estação, a não ser que o policial de plantão esteja de MUITO mal humor crônico); urinar num lugar público, sentar na grama de um parque ou num muro, conversar numa esquina com um grupo de amigos ou não levar vestido o pulôver.

O que sucedeu: o amigo de meu amigo não tinha vestido o pulôver e o policial estava com MUITO mal humor. Estavam numa parada e do ônibus o oficial gritou que se vestisse, o que fez sem brincar. O pior é que ao cara isto não bastou e desceu do ônibus para pedir-lhe a carteira de identidade. Não só tinha sua carteira, senão que como bom cidadão e homem cavalheiro trazia a da sua noiva, porém o destino que é sinistro quis que se enganasse e entregasse ao policial uma carteira "com nome de mulher".

Ser um oficial da PNR implica em muitos casos acreditar-se dono do azar, vale dizer, viver com a convicção de que tudo aquilo que acontece arbitrariamente está relacionado com alguém ou o seu cargo, o que é o mesmo: ser um complexado. E o policial compreendeu que não era o destino, senão que o amigo do meu amigo tinha dado uma carteira falsa para zombar dele, feminino para cúmulo da desfaçatez e prova irrefutável de "desrespeito com a autoridade" (atalhos incompreensíveis do machismo policial).

Uma patrulha que passava já havia chegado a "cena do crime"e o oficial fora de sí, gritou: Tu estás me faltando ao respeito! E deu uma bofetada. As pessoas da parada não esperaram e pularam em defesa do esbofeteado, sem calcular com certeza que saíam da patrulha mais oficiais de MUITO mal humor, com cassetetes na mão e sem haver feito o curso de que não-se-utiliza-o-cassetete-para-golpear-civis-indefesos.

O caótico resto da história é mais ou menos parecido com todos os demais, onde os protagonistas são jovens de 25 anos e policiais sem registro de endereço de moradia em Havana. Em algum momento os primeiros foram enfiados debaixo de porrada no tristemente célebre "carro jaula"e daí para a delegacia, onde começou o capítulo dois: a reconstrução dos fatos.

Porém o poder é o poder e as ocorrências que meus amigos se negaram a assinar eram: resistência a prisão e desacato à autoridade. Misteriosamente não se mencionou a bofetada, e muito menos a efeminada carteira que deu corda ao imaginativo sentido de causalidade do oficial.