sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Kangamba


Eu pensava que a guerra de Angola era uma das páginas obscuras de nossa história pós-revolucionária, porém me equivoquei. Acreditei que nunca mais ouviríamos falar de semelhante matança absurda, cujas origens e fins ainda desconhecemos, e que o governo nos pouparia a dor de reviver semelhante história.
Meu pai esteve em Angola. Não se feriu, porém pegou paludismo cinco vezes e embora tenha se curado da enfermidade, não se curou do alcoolismo típico dos que vão à guerra para morrer ou matar. Parece ser que depois de determinada quantidade de sangue e de mortos, já não se pode suportar a realidade da mesma maneira.
Porém não é pelo meu pai que escrevo este post. É por minha vizinha, cujo pai morreu lá. Ela era uma menina, sua mãe não pôde suportar a dor e desenvolveu uma esquizofrenia que talvez nunca houvesse surgido. A menina, hoje uma mulher, cresceu criada por uma louca que ainda não a deixa entrar em seu próprio quarto porque diz que há demônios. As duas, doentes dos nervos, sobreviveram o período especial e o post-especial. Testemunhas de Jeová, buscaram na Fé aquilo que a realidade se negava a dar-lhes: misericórdia.
Recebem uma absurda pensão da Associação de Combatentes, e que evidentemente não lhes chega para nada. Porém não sendo esta suficiente, uma vez dois vizinhos decidiram fazer algo para que alguem do governo se apiedasse delas, porque as condições em que estavam vivendo eram deploráveis. Assim foi que convocaram uma reunião. Não bastando a crua realidade, uma mulher disse que achava que deveriam tirar-lhes a dita pensão, pois muitas vezes elas eram desagradáveis com os vizinhos e não participavam das atividades do CDR. Por sorte, semelhante voz não teve coro.
E agora temos, para o cúmulo da vergonha, um filme que se chama Kangamba e que vendem com ares de epopéia. Para a estréia no Chaplin, mobilizaram uma boa quantidade de soldados que, embora a estréia fosse as oito da noite, foram vestidos de uniforme...ver Kangamba é uma tarefa da revolução. Os Ladas bloquearam toda a zona de estacionamento de 23 e 12, para que à ninguem fique dúvida que para nossos militares não só não lhes dói, senão que lhes orgulha que ainda hoje, depois de quase 20 anos, famílias mutiladas não se recuperem de perdas obscuras e sem razão.

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