sexta-feira, 23 de julho de 2010

"Meu marido vale a pena" entrevista telefônica com Suyoani Tapia Mayola (I)


Por acaso me inteirei da história desta médica de vinte e nove anos e seu marido, Horacio Piña Borrego, de 42, jornalista independente preso durante a causa dos 75. Enquanto me contavam a odisséia do seu destino me pareceu que estava lendo um capítulo de "Cumbres Borrascosas". Essas coisas não acontecem na vida real, pensei, e se acontece, eu tenho que falar com esta mulher, eu tenho que contar isso.

Um amigo comum nos pôs em contato e decidi chamá-la para que me desse seu testemunho. As palavras de Suyoani me calaram na alma e ainda dizem que por telefone tudo é mais frio, quando ela chorou eu também chorei do outro lado do auricular. Não pensei em publicar uma entrevista mas sim contar sua história; contudo, depois de gravá-la, alterar com as minhas palavras a vida desta garota me pareceu um sacrilégio.

Primeira Parte: Prisão de Canaleta, Ciego de Ávila

Como conheceste Horacio na prisão de Canaleta?

Nos vimos pela primeira vez numa cela de castigo. Foi chocante para mim já que eu não era médica da zona de isolamento, estava de plantão e haviam me chamado por que Horacio sentia-se mal.
Quando entrei no corredor a única coisa que havia era uma lâmpada incandescente, alí não entra a luz do sol porque as janelas estão fechadas com pedaços de zinco. Era um espaço imenso, não posso te dizer que tamanho tinha - é incomparável - haviam muitas celas pequenas, extremamente pequenas. E alí estavam cinco da causa dos 75: Raúl Rivero, Ariel Sigler Amaya, Luis Milán Fernández, Pedro Pablo Álvarez e meu marido, Horacio Piña.
Lembro que Horacio tinha dor de cabeça e pressão alta. Quando o vi através daquela grade foi extraordinário, desde esse momento os dois nos demos conta de que algo iria acontecer. Então nunca pensei que acabaríamos casando, que em algum momento até teríamos uma filha. Todavia foi mágico, eu tenho muita fé nesses acontecimentos, conhecer uma pessoa, enamorarmo-nos alí e logo formalizar um casamento e uma família, realmente tem que ser obra de Deus.

Por que os cinco estavam em celas de castigo?

Não havia razão para isso, foi a localização que as autoridades buscaram. É a cela de castigo para os presos comuns, porém tmabém é zona de isolamento. Qaundo eles foram presos os colocaram alí com os condenados à morte e à penas perpétuas. Horacio ficou alí um ano e quatro meses.

Quando se deram conta que estavam namorando?

No princípio éramos só amigos, mesmo que sempre tenha havido muita identificação. Em treze de maio de 2004 nós demos o primeiro beijo - quase um ano depois de nos conhecermos - porque como ele estava na zona de isolamento não nos víamos tão frequentemente, só uma ou duas vezes ao mes. Na prisão a relação dos presos com os oficiais e com os médicos é muito dificil, falaram muito al deles comigo. Meu marido me conta que muitas vezes quis puxar conversa, porém sentia medo de me decepcionar ou dizer algo errado, ainda mais em sua situação. Eu também tinha o intuito de lhe falar, porém tinha medo do mesmo modo.
Passou muito tempo antes que converssássemos, só quando o levaram ao destacamento com os outros prisioneiros nós começamos a nos ver praticamente todo dia e começamos a relação; eu atendia os pacientes crônicos e ele tinha várias doenças.
Nossa união foi, apesar de tanta diversidade, muito sólida: nunca falamos de algo passageiro, pelo contrário, sempre fizemos planos para o futuro. Tivemos muitas dificuldades porque existem coisas que não se pode dissimular: a segurança se deu conta que algo se passava, de que eu os ajudava, não só ele, mas também os demais. Começaram a nos vigiar, todavia nunca obtiveram provas palpáveis da nossa relação, se a imaginavam. Depois Raúl Rivero escreveu um poema relatando a nossa história, e a segurança a tomou. Horacio é maravilhoso, a pessoa que eu escolhi como modelo, apoio-me nele, dá-me forças para viver e continuar. Há gente que me diz: "Mas como é possivel? Tu és uma mulher jovem, tens uma vida pela frente. O que fazes unida à um homem condenado a vinte anos?" Eu simplesmente respondo: Meu marido vale a pena.

Quais foram as consequências de descobrirem tudo? O que aconteceu na tua vida pessoal e profissional?

Foram me buscar durante a consulta - eu estava justamente atendendo o Horacio - chegaram cinco oficiais da segurança e me levaram até um escritório, tudo aconteceu diante dele. Foi um momento terrivel, ele já sabia que algo se passava e disse aos oficiais: "Interroguem a mim, deixem-na!"

Pressionaram-me para que eu confessasse. Eu sou médica, era uma trabalhadora civil do MININT e fazia o serviço social, não éramos mais do que um homem e uma mulher, eles não podiam de me acusar de nada. Tentaram me intimidar usando a minha família, ameaçavam-me: diziam-me que iam contar para os meus pais. Um oficial me perguntou numa entrevista como era possivel que uma médica graduada da revolução se enamorasse de um terrorista. Nessa ocasião respondi: parece que você e eu não temos o mesmo conceito de terrorista, Horacio Piña não é terrorista.
Transferiram-me para outra unidade do MININT e ele foi mandado então para Pinar del Río. A última. A última entrevista em Canaleta foi em 18 de julho. Horacio foi mandado na madrugada de 11 de agosto para o Combinado del Este e posteriormente para Pinar del Río. Ou seja, ele só ficou mais uns dias em Ciego de Ávila depois que eu fui enviada para uma unidade de escritórios, nada relacionado com prisões. Eles diziam que não queriam perder uma médica, então, fiz uma permuta de lugar de trabalho: uma médica de uma escola estava interessada em mudar de trabalho, ela se incorporou ao MININT e eu fui para a escola.

Então não te permitiram continuar trabalhando em prisões?

Não, eles sabiam que eu tendo uma relação com ele iria ajudá-lo. Eles não querem, nem sequer podem imaginar que exista alguém que possa facilitar as coisas. Tive momentos de muita pressão, houve um dia em que eu estava esperando um ônibus para ir ao trabalho e na parada uma senhora dizia à outra: Há uma médica com um terrorista aqui na prisão de Canaleta.
Eles se encarregaram de divulgar esse alerta de "Médica com Terrorista" na minha província. Também foi muito dificil para minha família, meus pais foram citados pelo centro de trabalho. Foram momentos muito duros para todos, inclusive para ele, porque sentia-se impotente enquanto eu sofria toda aquela situação.

E tua família? Como reagiu ante tanta pressão?

Eu tenho uma família maravilhosa...me é dificil falar desse tema. No caso do meu pai, porque minha mãe é uma pessoa um pouco mais calada, disse-me: -Se nós não te ajudamos então quem o vai fazer? Tu és minha filha -. Recordar isso me dói.
No dia que a segurança me interrogou também interrogaram meu pai. Na manhã seguinte eu saía para o trabalho e me perguntou se necessitava que me acompanhasse:

-Papi, eu posso ir só - e me disse.
Então levanta a cabeça, não fizeste nada para que vás com a cabeça baixa.

Isso vou lhe agradecer sempre, na verdade tenho muito que agradecer aos dois porque ambos trabalham e estão relacionados de um forma ou outra com este governo, com o sistema. Outra família talvez não houvesse adotado essa posição. Os oficiais, inclusive, perguntaram ao meu pai por que eu continuava vivendo sob seu teto e ele alegou: -Não irá de casa de maneira alguma, é minha filha e vou ajudá-la em tudo. Assim o fez sempre, são sete anos já, praticamente, e aqui estou em Pinar del Río. Apesar de estarem longe eles tem me ajudado muitissimo.

E as pessoas, que atitude assumiram ante a difamação? Teus companheiros de trabalho, teus amigos?

Temos recebido o apoio de muitas pessoas, Horacio é muito sociável e fácil de se gostar. As enfermeiras nos ajudaram muito e ele, inclusive, mantém comunicação com pessoas em Canaleta. Eu lhe dizia naquela época: Tu tens olhos nas costas - e ele se justificava - As amizades me alertam dos perigos, me dão sinais quando alguém prejudicial para nós está perto.
A segurança do estado não conseguiu tirar a solidariedade das pessoas, essa é a espinha que eles têm cravada na garganta e por isso não me deixam viver em paz. Sempre fui perseguida, não tenho tido um momento de tranquilidade. Aqui em Pinar del Río, por exemplo, quando começo a trabalhar num lugar sempre acontece o mesmo, a princípio ninguém diz nada porém depois quando nos conhecemos confessam: Doutora eu tenho que lhe dizer uma coisa, antes de você chegar a segurança esteve aqui e nos disse que tínhamos que informar tudo o que você fazia, a hora de chegada e a hora de saída.
Chamaram meus pais e os pressionaram para que me peçam que volte, dizem-lhes que vão me dar trabalho, que vão me colocar na capital da província, que nào vai me acontecer nada...até a isto se atreveram.

(Fim da primeira parte da entrevista)

2 comentários:

Jambalaia disse...

Histórias como estas nunca houveram no Brasil.

Se fosse no passado tal história seria muito divulgada, pois haviam muitos governos militares na América Latina.

Na atualidade os defensores da democracia, vêem Cuba como uma força de agressão aos EUA, e se sentem satisfeitos.

antónio m p disse...

Muito importante esta entrevista. Nunca sabemos quem vai ler e que efeitos terá no futuro aquilo que publicamos. Continue!
Abraço desde Portugal.