Acabei hoje de terminar Persépolis, da escritora iraniana Marjane Satrapi e ví refletida uma parte da minha vida e das minhas inquietudes. Estranhas marcas inequívocas que os regimens totalitários, além da ideologia, religião ou cultura, deixam por igual em seus cidadãos.
Casualmente nele a autora fala de uma novela que se viu em Cuba quando eu ainda era uma menina: Oshin. Recordo que minha irmã e eu convertemos meu quarto num santuário japones, meu pai nos construiu uns palitos chineses para comer e minha mãe cozinhava o arroz para satisfazer nossas fantasias de telenovela trágica. Porém ainda mais venturoso resultou comprovar que Oshín em Cuba tampouco trabalhou como Gueisha, do mesmo modo que no Irã a dublagem a qualificou como "cabelereira", em Cuba foi "estilista". Lá o trabalho de Geisha não era de acordo com a moral islâmica, no outro lado do mundo, os comunistas consideraram que era oposto da moral socialista.
Quando tinha 20 anos tive um aluno de espanhol da Coréia do Norte, naquele tempo eu não tinha a menor ideia do que ocorria naqueles lares do mundo. Meu estudante era muito aplicado, falava com sotaque porém com correção gramatical e gostava das aulas. Contudo algo estranho nele me causava repulsa, suas ideias me assustavam e as redações me deixavam boquiaberta. Uma vez estávamos trabalhando no imperfeito do subjuntivo e no condicional, suas orações eram mais ou menos assim:
-Se o general houvesse pedido o sacrifício do exército, prazeirosamente os soldados haveriam morrido.
Nunca escreveu nada que não fosse a guerra. Decidí suspender o curso, pedi-lhe desculpas e dei-lhe algumas tarefas para que pudesse estudar. Não queria ir-se, disse-me que eu era a única pessoa estrangeira com a qual estava autorizado a falar em Cuba: a professora de espanhol. Disse-lhe que lamentava muito e o despedi.
Os anos se passaram e soube que a Coréia do Norte e nós compartilhavamos um mesmo destino: viver a ditadura. Dei-me conta de que a mesma sensação de liberdade que sinto quando publico meu blog ele sentia quando falava comigo e eu zombava de suas frases. Senti-me intolerante e indolente, tirei desse homem sua ligação à terra, seu túnel de informação. Nunca mais voltei a saber dele.
É incrível que compartilhemos sentimentos tão parecidos sendo tão diferentes, e que nossos governos utilizem técnicas absurdamente paralelas: Marjane disse que quando alguém está obcecado com a correção da sua veste já não tem tempo para preocupar-se com sua liberdade pessoal nem com os direitos dos outros. Quantas vezes não tenho ouvido a gente desanimada falar que em Cuba não se pode falar de política, porque primeiro há que se por comida na mesa?
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