sexta-feira, 7 de maio de 2010

A morte que nunca poderia ter acontecido



Texto: Ernesto Morales
Jornalista cubano, radicado em Bayamo
ernestomorales25@gmail.com

As últimas imagens se extinguiram de um plano aéreo, visão de uma Ilha que mostrava um lado do malecón (quebra-mar) de Havana, e eu advertia que então meu estado de ânimo havia mudado drasticamente. O Noticiário Nacional da Televisão de segunda-feira, primeiro de março, o fez de uma tacada. Dez minutos antes eu vivia minha própria vida e pensava nos meus próprios mortos. Porém logo ao ver o desamparo nos olhos de Reina Luísa Tamayo, uma anciã de pele escura e palavras simples que neste momento, estou certo, ainda chora o que nunca u`a mãe deveria chorar - a morte do seu filho - não pude voltar a ser o mesmo de momentos atrás.

Se algo eu deveria agradecer às impudicas câmeras ocultas que, violando qualquer preceito ético e moral, filmaram esta mulher durante uma consulta médica, mostrando suas esperanças ingênuas àqueles homens de batas brancas à quem pedia que salvassem seu filho, é precisamente isso: haverem me revelado seu rosto. Conhecer seus traços para confirmar o que supunha de antemão: esta pobre mulher não pode, não poderá compreender jamais, a morte do seu filho Orlando Zapata Tamayo, o prisioneiro de consciência que em minha dolorosa Cuba deixou de respirar em 23 de fevereiro passado, após 86 dias de greve de fome. Reina Luísa conhece, no máximo, a dor e desde agora, provavelmente o ódio. Porém não muito de ideologia nem de política.

E não poderá compreender porque teve que cobrir com terra o maltratado corpo do seu filho porque nem sequer eu, nem nenhum dos seres civilizados que nos orgulhamos de nossa espécie, poderemos entender a morte de um cubano de 42 anos de idade que agonizou estertóreamente, lacerando seu corpo pela inanição, por reclamar com valentia épica, e porque não, um tanto ortodoxa, o que da sua simplicidade considerava como seus direitos inalienáveis. Em resumo, uma prisão digna.

Esta morte provoca vertigem. Desconcerta. Esta morte que não poderia acontecer dói naqueles que acreditamos no melhor do ser humano, que não são posturas ideológicas, mas sim sentimentos.

E me leva a questionar, inevitavelmente, por esta Ilha que muitos habitam com orgulho, outros com pesar, e outros com a certeza de que toda ela é sua propriedade privada. Penso na barbárie civilizada, e como em nome de causas justas, um Governo pode causar o pior naqueles sobre quem governa: desumanizá-los.

Alguém me disse há pouco: temos um país doente. E eu digo: sim, doente de desídia, de rancores, de sentimentos degradantes. Não pode estar são um país onde a Televisão Nacional exibe no seu noticiário principal material ignominioso, e onde milhões e milhões de olhos após vê-lo, milhões e milhões de cérebros após processá-lo, não se geram manifestações de protesto, e nem sequer movimentos importantes que questionem o fato. Que peçam explicações verdadeiras pelo que não foi dito, pelo intencionalmente escondido.

Penso: a autora desse material, a jornalista que emprestou seu intelecto para semelhante infâmia, vive neste nosso país, certamente tem família, talvez filhos. Esta jornalista está tristemente doente de mentiras.

Foi um erro repetido todas as vezes que se transmitiu, nos espaços informativos, o não aparecimento dos créditos autorais? O será que esta decidiu, por prudência de última hora, ocultar sua identidade por
trás do anteparo de uma voz em off? Muitos a identificaram, perceberam seu nome conhecido de jornalista da televisão, porém ela, de modo suspeito, preferiu suprimir. Pergunto-me como poderá dormir em paz, alguém que deveria ter a verdade como credo, a objetividade como santa e palavra de honra, manipulando desse modo um caso que em todos nós deveria provocar, ao menos, uma onda de vergonha.

CONTINUA...

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