terça-feira, 1 de setembro de 2009

Causalidade policial


Foto: Claudio Fuentes Madan

Acabo de chamar um amigo e fico sabendo boquiaberta que dormiu numa delegacia de polícia. Meu amigo é pintor, tem 24 anos e é unanimemente reconhecido como "o melhor que há". Como sei que é dificil que se meta em problemas descarto as possibilidades mais comuns (as que temos vivido quase todos, menores de 30 anos e que não somos tão bons): esquecimento da carteira de identidade, brigar com alguém, gritar Abaixo o comunismo, Fidel, Raúl, A Segurança do Estado - numa rua escura ou andar com palavras "conflitivas"no pulôver.

Descartadas as mais comuns ficam as mais rebuscadas. Estas raras vezes tem seu colofão (inscrição nos fins dos manuscritos) na estação, a não ser que o policial de plantão esteja de MUITO mal humor crônico); urinar num lugar público, sentar na grama de um parque ou num muro, conversar numa esquina com um grupo de amigos ou não levar vestido o pulôver.

O que sucedeu: o amigo de meu amigo não tinha vestido o pulôver e o policial estava com MUITO mal humor. Estavam numa parada e do ônibus o oficial gritou que se vestisse, o que fez sem brincar. O pior é que ao cara isto não bastou e desceu do ônibus para pedir-lhe a carteira de identidade. Não só tinha sua carteira, senão que como bom cidadão e homem cavalheiro trazia a da sua noiva, porém o destino que é sinistro quis que se enganasse e entregasse ao policial uma carteira "com nome de mulher".

Ser um oficial da PNR implica em muitos casos acreditar-se dono do azar, vale dizer, viver com a convicção de que tudo aquilo que acontece arbitrariamente está relacionado com alguém ou o seu cargo, o que é o mesmo: ser um complexado. E o policial compreendeu que não era o destino, senão que o amigo do meu amigo tinha dado uma carteira falsa para zombar dele, feminino para cúmulo da desfaçatez e prova irrefutável de "desrespeito com a autoridade" (atalhos incompreensíveis do machismo policial).

Uma patrulha que passava já havia chegado a "cena do crime"e o oficial fora de sí, gritou: Tu estás me faltando ao respeito! E deu uma bofetada. As pessoas da parada não esperaram e pularam em defesa do esbofeteado, sem calcular com certeza que saíam da patrulha mais oficiais de MUITO mal humor, com cassetetes na mão e sem haver feito o curso de que não-se-utiliza-o-cassetete-para-golpear-civis-indefesos.

O caótico resto da história é mais ou menos parecido com todos os demais, onde os protagonistas são jovens de 25 anos e policiais sem registro de endereço de moradia em Havana. Em algum momento os primeiros foram enfiados debaixo de porrada no tristemente célebre "carro jaula"e daí para a delegacia, onde começou o capítulo dois: a reconstrução dos fatos.

Porém o poder é o poder e as ocorrências que meus amigos se negaram a assinar eram: resistência a prisão e desacato à autoridade. Misteriosamente não se mencionou a bofetada, e muito menos a efeminada carteira que deu corda ao imaginativo sentido de causalidade do oficial.

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