sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Santa Clara - La Habana (1)


Imagen: Hamlet Lavastida, exposição agosto 2009 em galeria particular.

Ontem cheguei de Santa Clara num ônibus Yutong dos novos, com ar condicionado. A espera e a viagem poderiam ter sido perfeitas, porém lamentavelmente as instituições, as empresas e os serviços deste país, ainda que lhes injetem milhares e milhares de dólares, não podem deixar de arfar em seu agônico suplício estatal.

A uma da manhã cheguei na estação de Santa Clara, como não tinha passagem de volta (impossível comprá-la em Havana) inscrevi-me na lista de espera para o primeiro ônibus por ordem de chegada, serão chamados os que não tem passagem e ocuparão os lugares vagos que restarem.

A sala de espera estava quase vazia, uns meninos dormiam sobre as pernas de suas mães e outros cabeceavam em desconfortabilíssimos assentos de plástico, um chegou a perguntar se o designer sentia um obscuro e tortuoso ódio contra a humanidade. Surpreendeu-me poder fumar e também dormir no chão, como haviam meninos fumei fora e não me acomodei no chão porque me parecia inumano. Coloquei minha bolsa na cadeira ao lado e recostei, não era uma cama porém depois de uma hora num terminal, apoiar a cabeça é como entrar no paraíso. Por uma desgraça o paraíso terreno é só para privilegiados, chegou a CVP da sala e me despertou:

-Não podes apoiar-te na cadeira ao lado.
-Porque?
-Porque é o regulamento, se chega um inspetor me repreeende.
-Essa lei é um pouco fascista, senhora. Sabia que na STASI uma das torturas que utilizavam era não deixar os prisioneiros dormirem? Isso não incomoda o inspetor?
-Além disso não podes colocar a bolsa na cadeira ao lado, estás ocupando um lugar que é para pessoas.
-Se alguém vier a tiro, porém aqui está vazio, não creio que isto aconteça.
-Tens que tirá-la, é TRATAR MAL A PROPRIEDADE SOCIAL.
-Desculpe porém você compreeenderá que isso não é TRATAR MAL A PROPRIEDADE SOCIAL, é absurdo. Sinto muito: não vou tirá-la.

Estava segurando o riso com isso de TRATAR MAL A PROPRIEDADE SOCIAL. Já sabia que ia me custar caro discutir com uma funcionária estatal. Com estes personagens a coisa pode se tornar muito grave, ganham um salário de miséria porém tem o poder absoluto em 5 metros quadrados e o exercem com a mesma irreverência, força e abuso de poder com que viram o "Poder Absoluto Maior" aplicar a eles, um tipo de vingança, suponho.

Ficou histérica e começou a gritar, disse-me que eu não podia fazer o que me dava vontade, que se a diretora não suportava este tipo de atitude, quem eu pensava que era e que por minha culpa não lhe iam tirar a insígnia porque primeiro me matava.

-Perdão, se eu deixo minha bolsa aqui tiram a sua insígnia? Houvesse começado assim , já a tiro.
-De mim ninguém tira a insígnia! Tu tiras a bolsa porque é TRATAR MAL A PROPRIEDADE SOCIAL ou te tiro a pontapés daqui!

Segurei a gargalhada, começou a me dar um pouco de pena aquela mulher que já nem sequer preocupava-se com a carteira, mas sim em descarregar seu poder de ferir contra mim. Olhei ao redor e vi que as pessoas começavam a sorrir. Tampouco pude negar que a palhaça de uma CVP com uniforme cor de canela diarréia num terminal de ônibus as tres da manhã é o mais triste do mundo. Tratei de acalmá-la.

-Olha, já tirei a bolsa, pode acalmar-se.
-Veja bem, se te vejo tratando mal a propriedade social ou dormindo chamo a polícia e eu mesma te pego pelos cabelos e te jogo no camburão.
-Olhe, já me despertou e evidentemente não dormirei de novo, a bolsa foi tirada porque não quero que você fique sem a insígnia e por outro lado, não me ameace, não tenho medo de você nem da polícia. Além disso, quando chamar a delegacia me avisa, quero escutá-la dizer as tres da manhã que solicita uma patrulha para uma garota que tem uma bolsa na cadeira ao lado, é um delito sem paralelo na história, ficaria encantada em ouvir a resposta que lhe dará o oficial de plantão.

Foi-se, porém estava fora de si, continuou gritando por algum tempo por todo o pátio, num momento acercou-se da janela e me repreendeu:

-Acontece que eu quero é que viajes, por isso é que te deixei.

Tive que controlar-me fortemente para não responder-lhe "Eu também tirei a bolsa para te ajudar, estamos quites", porém temi que lhe desse um derrame cerebral nesse mesmo instante. O resto da madrugada passou me vigiando, acordou uns quantos mais que dormitavam na cadeira e conseguiu lá pelas cinco e meia, que metade da estação se revirasse desdenhosa no chão enquanto que os mais escrupulosos fumavam tranquilamente em seus assentos.

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